Para acompanhar o Argonauta de 1 de Junho de 2019, dedicado a D. Quixote De La Mancha de Miguel de Cervantes, ilustrado musicalmente por Montserrat Figueras, Hespèrion XXI, La Capella Reial De Catalunya e Jordi Savall.
Capítulo XLVIII Onde prossegue o cónego o assunto dos livros de cavalaria, com outras coisas dignas da sua inteligência
— Vossa Mercê , senhor cónego, tocou num assunto — disse nesta altura o cura —, que acordou em mim um antigo rancor que tenho às comédias agora habituais, tão grande que iguala o que tenho aos livros de cavalarias; porque devendo ser a comédia, segundo parece a Túlio, um espelho da vida humana, um exemplo dos costumes e imagem da verdade, as que se representam agora são espelhos de disparates, exemplos de ignorância e imagens de lascívia.
Juan de Jáuregui nasceu em Sevilha em 1583, de pais nobres. Sobre a sua formação pouco se sabe, excepto que esteve em Itália, provavelmente a estudar pintura. Na verdade, no seu tempo teve fama como pintor, de cuja obra não restam senão algumas gravuras em livros de época, pois o retrato de Cervantes que lhe foi atribuído já não se considera seu.
Retrato de Miguel de Cervantes (?) de Juan de Jáuregui.
Alonso Zamora Vicente, Historia de la Real Academia Española, Madrid, Espasa, 1999, p. 12.
Em Roma, publicou em 1607 a tradução de Amintade Torquato Tasso.
Em Sevilha, Jáuregui participou na tertúlia que se realizava no atelier do pintor Francisco Pacheco (mestre e sogro de Velásquez); pelo que é geralmente incluído no grupo que, a partir do século XIX, se tem autodenominado impropriamente escola sevilhana.
Em 1614 começou a escrever o Antídoto contra la pestilente poesía de las «Soledades», aplicado a su autor para defenderle de si mesmo, […]
Em 1618, Jáuregui publicou um volume de Rimascom uma tradução do Aminta(em que muito alterou face à saída em 1607). A Introdução às Rimas é um texto importante para conhecer a poesia de Jáuregui e o que ele pensava da poesia do seu tempo.
Jáuregui fixou-se em Madrid em 1619, sendo censor de novelas a partir de 1621 até à sua morte, em 11 de Janeiro de 1641.
Em 1624 publicou em Madrid o poema Orfeoe o Discurso poético, em que expõe as suas ideias sobre poesia. Estes dois livros foram então julgados contraditórios: enquanto o Discurso poético é um ataque ao gongorismo extremo dessa altura, o Orfeofoi lido como um poema que segue os grandes poemas de Luis de Góngora [1561-1627], saídos uns anos antes. O Orfeoé um poema dividido em cinco cantos, com 186 oitavas, que segue o tema de Orfeu e Eurídice exposto nas Metamorfosesde Ovídio, valendo-se também das Geórgicasde Virgílio, da Eneidae de fontes italianas, nomeadamente Poliziano e Marino. […]
E Já que a lira, em afinadas vozes, precursora do canto se adianta, e em mui lentos acordes ou velozes soa a constante ou trémula garganta, feras vorazes, áspides atrozes amansa terno, sonoroso encanta; chega essa voz, em rochas e montanhas, a infundir vidas, a humanar entranhas.
Fragmento do Canto IV de Orfeo
A publicação de Orfeoprovocou o aparecimento do Orfeo en lengua castellana, assinado por Juan Pérez Montalbán, amigo de Lope de Vega, que tem sido considerado pela crítica como o verdadeiro autor desta obra, mas que não quis aparecer descoberto contra Jáuregui, que, com o seu Antídoto, se tornara um dos maiores inimigos de Góngora. […]
Jáuregui é uma interessante figura da primeira metade do século XVII em Espanha, tanto pela sua poesia como pelas suas ideias, que mantinha com independência frente aos grandes poetas do seu tempo. Seguiu a evolução da poesia espanhola desde Garcilaso de la Vega [1498? – 1536], sendo um cultistaque possivelmente aprendeu com Góngora mas não se alistou no grupo que se formou em torno do autor das Soledades; Seguindo a lição de Garcilaso e Herrera, teve a preocupação de ser claro, como se depreende dos seus escritos teóricos. A sua poesia, sobretudo o Orfeo, distingue-se pela capacidade descritiva, pela movimentação e colorido próprio do pintor que ele foi.
in Antologia da Poesia Espanhola do Siglo de Oro, segundo volume – Barroco selecção e tradução de José Bento
Comemoram-se hoje os quatrocentos e cinquenta anos do nascimento de Lope de Vega [1562-1635].
A emissão desta semana do Musica Aeterna, dedicada ao poeta, dramaturgo, fundador da comédia espanhola e um dos mais prolíficos autores da literatura universal, inclúi, para além da leitura de vários poemas seus traduzidos pelo meu amigo José Bento, que acabou de completar oitenta primaveras, uma passagem do “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes e repertório de Alonso Mudarra, Pedro Rimonte, Francisco Guerrero, Sebastián de Vivanco, Luys de Narváez, Diego Ortiz, Tomás Luis de Victoria, Antonio de Cabezón, Rodrigo de Ceballos, Antonio Martín y Coll e de autores anónimos, todos contemporâneos de Lope de Vega na Espanha dos séculos XVI e XVII.
O link para o podcast será aqui colocado logo que seja disponibilizado pela Antena 2.
Atada al mar Andrómeda lloraba,
los nácares abriéndose al rocío,
que en sus conchas cuajado en cristal frío,
en cándidos aljófares trocaba.
Besaba el pie, las peñas ablandaba
humilde el mar, como pequeño río,
volviendo el sol la primavera estío,
parado en su cénit la contemplaba.
Los cabellos al viento bullicioso,
que la cubra con ellos le rogaban,
ya que testigo fue de iguales dichas,
y celosas de ver su cuerpo hermoso,
las nereidas su fin solicitaban,
que aún hay quien tenga envidia en las desdichas.
Atada ao mar, Andrómeda chorava,
os nácares abrindo-se ao rocio,
que em conchas coalhado em cristal frio,
em cândidos aljófares tornava.
Beijava o pé, as rochas abrandava
humilde o mar, como um pequeno rio;
o sol tornando a primavera estio,
parado em seu zénite a contemplava.
Os cabelos ao vento buliçoso,
que a cobrisse com eles lhe rogavam,
já que foi testemunha de iguais ditas;
ciosas de ver seu corpo tão formoso,
as Nereidas seu fim solicitavam,
que até há quem tenha inveja nas desditas.
Este Vilancico pertence ao delicado livrinho ‘Jardim de Poesias Eróticas do Siglo de Oro’, com selecção, tradução, introdução e notas de José Bento, numa edição da Assírio e Alvim.
Quem tiver curiosidade de comparar com a tradução que aqui encontrei, facilmente constata a subjectividade que cada autor empresta à obra traduzida. Não será o caso, mas há textos que nem se deviam traduzir!
Porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.
Que estando, mãe, a dormir,
do que estou arrependida,
senti-o estar a subir
minha camisa florida;
mesmo de riso esvaída,
pensá-lo dá-me temor,
porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.
E estando eu, como vos digo,
a dormir me surpreendeu;
tocou-me sob o umbigo,
tudo quanto Deus me deu.
Assim, como quereis que eu
possa por ele ter amor?
Porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.
Porque, com artes mesquinhas,
remexeu pouco a pouquito
suas pernas entre as minhas
até que me deu no fito:
é meu sofrer infinito,
já não pode ser maior,
porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.
Que, como se meneava,
mais se mostravam gostosos,
dois mil gozos que me dava
como açúcares saborosos.
Deu-me uns beijos tão sumosos
que jamais perco o sabor.
Porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.
Formosura que excedeis
mesmo as grandes formosuras!
Sem ferir, sofrer fazeis,
e sem sofrer desfazeis
o amor das criaturas.
Oh, laço que assim juntais
duas coisas díspares!,
não sei porquê vos soltais,
pois atando força dais
pra ter por bem os pesares.
Quem não tem ser vós juntais
com o Ser que não se acaba;
sem acabar, acabais,
e sem ter que amar amais,
engradeceis o nosso nada.
in Rosa do Mundo, de Santa Teresa de Ávila (1515-1582) Assírio & Alvim, 2001 – tradução de José Bento Jacques Blanchard – Venus and the Three Graces Surprised by a Mortal, c. 1631 – 1633
Musée du Louvre
No septuagésimo oitavo aniversário do meu roncinante amigo, fica a homenagem ao vulto da cultura portuguesa a quem, em 2006, foi atribuído o 1º Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura. É de sua autoria a monumental tradução de Don Quixote de La Mancha de Cervantes, com ilustrações de Lima de Freitas e editada pela Relógio D’ Água.
Sandro Botticelli – Giovanna degli Albizzi Receiving a Gift of Flowers from Venus, 1486
Para Botticelli
Pressinto que o mundo cresce de teus dedos quando num clarão mortal se rasgam asas e faces lívidas de anjos choram suas raízes arrancadas do chão.
Quando o vento grita em teus cabelos que não é o mar a seara que se ondula.
Quando um perfil destrói em si a noite e o teu peito, onde límpida era a sua côr.
Quando uma árvore frutifica a sua solidão e se ilumina com um súbito canto ou um vulto quase irreal de ser tão breve.
Quando, de olhos sangrentos, sentes nitidamente o anoitecer e exausto abandonas a cabeça a mãos ausentes: náufrago de veias que prolongam a terra, transfigurado no rosto onde a manhã te anuncia o seu regresso.
Pressinto que o mundo cresce de teus dedos
quando num clarão mortal se rasgam asas
e faces lívidas de anjos
choram suas raízes arrancadas do chão.
Quando o vento grita em teus cabelos
que não é o mar a seara que se ondula.
Quando um perfil destrói em si a noite
e o teu peito,
onde límpida era a sua côr.
Quando uma árvore frutifica a sua solidão
e se ilumina
com um súbito canto
ou um vulto quase irreal de ser tão breve.
Quando, de olhos sangrentos,
sentes nitidamente o anoitecer
e exausto abandonas a cabeça a mãos ausentes:
náufrago de veias que prolongam a terra,
transfigurado no rosto
onde a manhã te anuncia o seu regresso.
“Vê, meu filho: estes olhos sem fundo fitando o caminhante que este quadro contempla
enquanto apontas aquele corpo alado,
o nobre corpo alado entre rostos e mãos,
são os teus.
Tu és este menino
senhoril e assombrado diante dos senhores.
No teu lenço, minha firma e uma data;
na língua antiga dessa ilha secreta
que me sagrou na luz que não virá ungir-me
escrevi claramente:
“domeniko theotokópoli o fez
1578”.
Não este quadro mas a ti, nesse ano.
Proclamo assim no rigor desta linguagem,
pertença minha como de ninguém,
que te amo sobre todas as coisas:
és a obra mais sonhada e mais gerada
em mim, que existo para minhas obras.
És tão pequeno, não sei quem irás ser,
talvez não te distingas entre quem é turba
e de ti falem só por seres meu filho,
tenham tua face porque segunda vez
te dou a vida neste painel sem preço,
sustendo aí tua carne e sua graça
quando nem se suspeite o lugar de tuas cinzas.
Estes traços e cores, o vasto alento
que de mim pus neste espaço fugaz
irão levar-me longe, onde serei falado
por gentes de hoje que jamais verei,
por outras que o futuro há-de trazer-me.
Mas tu és o meu júbilo íntimo,
a mão que estreito, o corpo que adormeço
enquanto eu vivo for, corpo de mim.
Que me importa a minha obra,
importando-me muito mais que tudo, sempre,
que me dá o meu génio, dando tanto,
– se valores vãos contigo comparados,
embora os louve para dourar meu vazio?
Minha sombra ir-se-á puindo como sombra,
de nada servirá minha ambição
de querer permanecer e eternizar-me
contra o tempo feroz, dissimulado.
Alguns séculos que resistam minhas telas
ante a erosão dos juízos e dos astros
serão apenas um soluço irremível.
Mas em ti continuarei, no testemunho
que entregarás aos filhos dos teus filhos,
que o perpetuem de geração em geração:
em sua palavra em sangue a ansiar vida,
no que de ínfimo façam, pois o homem
– seja quem for – só faz coisas mesquinhas,
estarei, então um nome, ou já nem isso. Tudo o que não sejas tu agora é nada.
in Silabário, de José Bento – Relógio D’Água, 1992
Como diluir as estrias que traem tua idade
ao irromper do que não queres lembrar,
a não ser quando tudo te repudia tanto
que em ti embebes as tuas espadas,
ansiando remir o que não clama resgate?
E ris, sorris: corola vesperal a desfolhar nas faces
um esmalte falaz que teus olhos recusam.
Injuria-te a luz, embora te defendas
num recanto que as lâmpadas receiam:
aí a música amaina, extenuada,
permite que te envolva
uma outra que de ti se evola
num tempo de que foste expulsa.
Não são máscaras esse carmim viscoso,
os cabelos sufocados em adornos grotescos
e em tinta,
o debrum crepuscular das pálpebras,
a cilada sedenta de uma boca
constrangida a abdicar da força da mentira.
São em ti apelos transparentes:
por eles te denuncias e somente
suplicas ser, sem precisares depor
sobre teus desígnios, teus actos.
Que poderás dizer que todos não saibam?
O que és não o partilharás ao exprimi-lo.
Tuas palavras para os outros significam
o mesmo que silêncio. E os teus gestos
só para ti vertem um conteúdo.
Mas reges a magia de discretos sinais:
uma pulseira que distancia tua mão, um aroma
a convidar para um quarto clandestino,
um leque a ondular sobre o teu peito
o adejo de uma dança nupcial.
Detém-te nesse lugar, se ninguém te convida.
Na noite, tua cama pródiga, um esquife
que te espera sem pressa.
Goya ou uma objectiva cruel
iludem-se quando tentam perpetuar-te
ao tornar-te motivo de uma tela
tão perecível como tu.
Mas de nada te acusam:
apontam-te ao meu discurso desatento,
a alguém que deseje
conhecer o corpo turbado que dissipas.
Poema de José Bento – Silabário
Fotografias de Pierre Molinier
Jos d'Almeida é um compositor de música electrónica épico sinfónica, podendo este género ser também designado como Electrónico Progressivo. Na construção de um som celestial, resultante da fusão de várias correntes musicais, JOS utiliza os sintetizadores desde o início dos anos 80.
Chuck van Zyl
Chuck van Zyl has been at his own unique style of electronic music since 1983. His musical sensibilities evoke a sense of discovery, with each endeavor marking a new frontier of sound.