O Mistério Inglês e a Corrente de Ouro
Ensaio publicado no I em 2009.
por João Carlos Espada, Doutorado em Ciência Política em Oxford; Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; Presidente da Churchill Society e da Revista Nova Cidadania
Por que razão a Inglaterra resistiu a Hitler, inicialmente sozinha, e foi a primeira a denunciar a “cortina de ferro”? Provavelmente, pela mesma razão que lhe permitiu assimilar todas as revoluções modernas sem nunca recorrer à Revolução.

A Inglaterra, pela voz de Churchill, resistiu à Alemanha nazi e denunciou a Cortina de Ferro soviética. Foto: Central Press
“O tema do seu futuro doutoramento não é o mais importante”, disse Karl Popper quando o conheci no Algarve, em 1987. Isso deixou-me um pouco surpreendido, porque eu tentava encetar uma séria discussão sobre temas de investigação. E fiquei ainda mais com o que se seguiu: “O mais importante é que vá estudar e viver em Inglaterra. Se o fizer com verdadeira curiosidade intelectual, viver e estudar em Inglaterra é mais importante do que o tema que se está a estudar”.É improvável ouvir um filósofo eminente como Karl Popper sublinhar que uma experiência inglesa é mais importante do que uma tese de doutoramento. Foi então que Popper falou pela primeira vez no “mistério inglês”:“É difícil explicar, e é por isso que é tão importante vivê-la. Nós devemos a Inglaterra a sobrevivência da democracia no século XX. Mas, antes disso, já lhe devíamos a mera credibilidade da hipótese democrática. E ao império inglês devemos a expansão dessa credibilidade pelos quatro cantos do mundo ? aquilo que Winston Churchill chamou de ‘povos de língua inglesa’. É um mistério, podemos chamar-lhe o mistério inglês”.Esta conversa com Karl Popper foi determinante para o que viria a fazer nos 22 anos subsequentes. De tal maneira que não é exagero dizer que me dediquei desde então ao estudo do “mistério inglês” e que vou tentar esboçar aqui algumas das coisas que julgo ter aprendido entretanto sobre “o mistério inglês”. Por amável convite do Director deste jornal, publicarei semanalmente um ensaio sobre esse mistério. Parte do que tenho a dizer foi publicado recentemente em livro sob o título “A Tradição Anglo-Americana da Liberdade: Um Olhar Europeu” (Cascais: Principia, 2008), e aguarda publicação em língua inglesa. Uma outra parte será aqui revelada aos sábados.
A interrogação de Karl Popper sobre o mistério inglês pode ser formulada de muitas maneiras. Vim a perceber que era um mistério muito conhecido, desde pelo menos o final do século XVII, sobretudo entre aqueles que admiravam o regime constitucional inglês, por contraste com o absolutismo continental, sobretudo francês e castelhano. Nessa época, o mistério inglês traduzia-se basicamente na pergunta seguinte: “porque é que a Inglaterra tem um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto no continente existem sobretudo monarquias absolutas?” Essa foi a pergunta de Montesquieu, em 1748, no seu O Espírito das Leis. Depois da Revolução Francesa de 1789 – essa “doença infecciosa”, como lhe chamou Edmund Burke – a pergunta manteve-se, com uma curiosa alteração: “porque é que a Inglaterra mantém um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto na Europa temos agora a paixão pelo despotismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pela paixão pelo absolutismo real?”
Álcool em estômago vazio. Esta pergunta foi reformulada por Lord Quinton, no capítulo dedicado à filosofia política, através do qual deu o seu contributo para a Oxford History of Western Philosophy. Anthony Quinton afirma aí que “o efeito da importação das doutrinas de Locke em França foi muito semelhante ao do álcool num estômago vazio.” E o autor acrescenta que, em Inglaterra, os princípios de Locke “serviram para sancionar uma ampla revolução conservadora contra a inovação absolutista” (referindo-se à chamada “Gloriosa Revolução” de 1688). Em contrapartida, observa Quinton, a importação das ideias de Locke pela França conduziria ao radicalismo da revolução francesa. [A. Quinton, “Political Philosophy”, Anthony Kenny (ed.), The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, (Oxford, Oxford University Press, 1994), 327].
O milagre da Inglaterra moderna. Esta diferença, entre a revolução inglesa relutante de 1688 e a caótica revolução francesa de 1789, captou a imaginação de várias gerações de anglófilos na Europa. Em Anglomania: A European Love Affair (New York: Random House, 1998), Ian Buruma oferece uma excelente panorâmica, divertida e informativa, do impacto da tradição política inglesa sobre várias gerações de anglófilos na Europa.
Desde a Revolução Francesa de 1789, gerações sucessivas de grandes intelectuais franceses – como Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville, Élie Halevy ou Raymond Aron – observaram a propensão da França para o eterno conflito entre revolução e contra-revolução.
Em Inglaterra, a revolução mais recente ocorrera em 1688-89, e mesmo essa apresentara-se como revolução relutante, visando restaurar as antigas liberdades constitucionais consagradas na Magna Carta de 1215. Em França, pelo contrário, a Revolução de 1789, ela própria composta de uma sucessão de episódios revolucionários e contra-revolucionários, abrira caminho a uma profunda instabilidade constitucional. Entre 1789 e 1871, em escassos 82 anos, a França teve dois golpes de estado (Bonaparte em 1799 e Louis-Napoleon Bonaparte em 1851), um consulado (1799-1804), um primeiro império (1804-1814-1815), uma restauração com duas monarquias (1814-1830), uma monarquia constitucional (com Louis-Philippe, 1830-1848), um segundo império (1852-1871), e três repúblicas (1792-99, 1848-51 e 1871).
Este contraste gritante entre a estabilidade inglesa e a instabilidade francesa levou os anglófilos ingleses a lamentar que a chamada “Pátria das Luzes” não tivesse conseguido reproduzir o chamado “milagre da Inglaterra moderna”, uma frase cunhada por Élie Halevy. É importante notar, no entanto, que este milagre não residiu apenas, nem mesmo sobretudo, no facto de a Inglaterra ter sido poupada à revolução desde 1688. Como recordou a distinta historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb, “o verdadeiro “milagre da Inglaterra moderna” (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução.” [Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: A study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, [Chicago: Ivan R. Dee, 1995 (ed. Or: Knopf, 1968)], p.292].
Uma corrente de ouro. Creio que uma das melhores ilustrações desta versatilidade não revolucionária da cultura política inglesa reside numa passagem de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai, Lord Randolph Churchill, um destacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai:
“[Lord Randolph Churchill] não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.” [Winston S. Churchill, “Personal Contacts”, in Thoughts and Adventures, (London: Thornton Butterworth, Ltd, 1934), p. 52].
Seria muito difícil encontrar uma passagem deste tipo – que combina uma visão profundamente conservadora com uma visão profundamente democrática – num actor político marcante da tradição política continental. Como observou Tocqueville, no continente europeu, os políticos conservadores tendiam a opor-se à democracia, e os defensores da democracia tendiam a opor-se aos modos de vida e às mundovisões conservadoras. Esta dicotomia fatal conduziu a Europa continental àquilo que Tocqueville designou por “conflito estéril entre Antigo Regime e Revolução”. Na tradição política de língua inglesa, essa dicotomia não existiu, ou nunca foi levada a sério.
Um argumento aos sábados. Ao longo desta série de ensaios, procurarei mostrar que o “mistério inglês” não pode ser decifrado sem compreender essa “corrente de ouro” de que falava Winston Churchill. É ela que também explica o “milagre da Inglaterra moderna”. E é a ausência dessa mesma “corrente de ouro” que explica o “efeito do álcool em estômago vazio” produzido em França pela importação das ideias de Locke.
Argumentarei, finalmente, que é ainda essa “corrente de ouro” que explica que a Inglaterra tenha resistido a Hitler, inicialmente sozinha, e, logo em 1946, tenha sido a primeira – de novo pela voz de Winston Churchill – a denunciar a “cortina de ferro” soviética.
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A liberdade e o sentido do dever estão no centro daq reflexão de Edmund Burke, um dos mais respeitados pensadores políticos ingleses
No mundo de língua inglesa, Burke é venerado por todos os quadrantes políticos civilizados. O socialista Harold Laski considerou-o um dos maiores pensadores políticos britânicos. O presidente norte-americano Woodrow Wilson, um homem situado à esquerda, citava-o como seu mestre. Raymond Plant definiu-o como inspirador do New Labour de Tony Blair. Simultaneamente, à direita, Burke é visto como o fundador do moderno conservadorismo de Disraeli, Salisbury, Churchill e Margaret Thatcher. Como explicar esta versatilidade de Burke? E, o que é ainda mais difícil, como explicar que no continente europeu Burke seja visto como um mero reaccionário ultrapassado que nunca compreendeu a Revolução Francesa?
Por outras palavras, Edmund Burke está no centro do “mistério inglês” que procuramos decifrar nestes ensaios – o mistério do mais antigo regime liberal que assimilou todas as revoluções modernas sem nunca recorrer à revolução.
Um enigma que vem de longe. Quando a Revolução Francesa começou, em 1789, todos esperavam que Edmund Burke a apoiasse. Ele era o líder parlamentar dos Whigs, os antepassados aristocratas dos liberais. Durante toda a sua ilustre carreira parlamentar, Burke distinguira-se na oposição aos Tories, os antepassados dos conservadores (que ainda hoje usam aquele nome). Defendera os direitos dos católicos irlandeses; defendera os direitos dos colonos americanos, considerando que a Declaração de Independência das 13 colónias fora produto da intransigência Tory; condenara os abusos britânicos na Índia e liderara o processo de impugnação de Warren Hastings, governador da Índia e líder Tory; finalmente, condenara o chamado “governo de corte” do rei Jorge III e defendera o controlo parlamentar sobre os governos.
Em suma, os Tories detestavam Edmund Burke. Os Whigs, por seu lado, viam-no como o seu líder intelectual. Assim, quando Burke fez um primeiro discurso parlamentar exprimindo sérias reservas face à Revolução Francesa, um pesado silêncio caiu sobre a Câmara dos Comuns. “Como é possível?”, perguntavam os Whigs. “Que estará este agora a tramar?”, perguntaram os Tories. E o silêncio daria lugar à estupefacção. Burke acentuou as suas críticas à revolução gaulesa e, em 1990, publicou a sua obra-prima – “Reflexões sobre a Revolução em França” – um ataque demolidor ao projecto revolucionário. Do lado liberal choveram os ataques e ele foi acusado de ter perdido o juízo. Do lado conservador, a admiração crescia – mas em silêncio.
Desta forma, tudo indicava que Edmund Burke ia terminar a sua longa e brilhante carreira em total isolamento. Só que, em 1793, Luís XVI é executado e tem início o Reino do Terror em nome da República da Virtude – uma adaptação intencional do Reino da Virtude de Jean-Jacques Rousseau. De súbito confirmavam-se as previsões de Burke acerca do destino anárquico e despótico da Revolução Francesa. Alguns dos críticos, embora não todos, reconheceram publicamente que Burke tivera razão. Os Whigs começaram a aceitar a tese principal burkiana: que a revolução em França era fundamentalmente diferente da revolução inglesa de 1688 e da revolução americana de 1776. E as elites de língua inglesa – incluindo os conservadores e os liberais – iniciaram uma espécie de exame de consciência para tentarem assimilar a mensagem de Burke sobre a especificidade da liberdade ordeira no mundo de língua inglesa.
Três teses. Podemos resumir os argumentos de Burke em três teses essenciais.
Em primeiro lugar, disse que a ideia de revolução total é absurda e que nunca estivera presente na tradição liberal inglesa, mesmo quando esta tivera de recorrer à revolução.
Em segundo lugar, disse que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes, não um governo activista que quer “libertar” os cidadãos dos seus próprios “preconceitos e disposições”.
Em terceiro lugar, observou que para limitar o governo não é preciso recorrer a uma filosofia que faça depender tudo da escolha dos indivíduos. Recordou que o sentido do dever não depende da vontade ou da escolha de cada um, que “o dever e a vontade são até termos contraditórios”. Finalmente, sustentou que a liberdade não será duradoura entre os povos que ignorem o sentido do dever.
O absurdo da revolução total. A crítica de Burke à ideia de revolução total é extraordinariamente moderna. Antecipou a epistemologia falibilista de Karl Popper e as teorias de Hayek e Oakeshott sobre a natureza tácita e descentralizada de uma boa parte do nosso conhecimento. Basicamente, Burke não criticou a revolução total em nome de manter tudo na mesma. Criticou-a por assentar no pressuposto ingénuo de que podemos desenhar o futuro, em vez de simplesmente tentar influenciá-lo. Disse que todas as acções humanas produzem alguns efeitos que não podem ser previstos. Afirmou que o melhor plano central será sempre corrigido por não especialistas que têm um conhecimento directo das circunstâncias particulares. Logo, não é possível saber com certeza o que trará uma mudança total. Isso não significa que tudo deva permanecer como está. Significa que deve haver uma interacção permanente entre tradição e mudança, e que esta deve ser gradual, por ensaio e erro, de forma a poder ser corrigida e mesmo revertida quando as suas consequências se revelarem indesejáveis.
O melhor regime político é, pelas razões acima referidas, aquele que garante uma interacção ordeira entre tradição e mudança. Esse é o regime misto inglês – fundado na interacção entre um princípio monárquico (o rei), um princípio aristocrático (a Câmara dos Lordes) e um princípio democrático (a Câmara dos Comuns), todos sob o governo comum da “common law”, que protege a vida, a liberdade, a propriedade e os contratos. Foi para manter este equilíbrio que a revolução de 1688, tendo efectivamente afastado o rei Jaime II, preferiu declarar que o rei abdicara e procurou uma sucessão dinástica. A Revolução Francesa, pelo contrário, quis apagar o passado e até o calendário resolveu mudar. O resultado só poderia ser a anarquia e, depois, a tirania.
Despotismo activista. Burke condenou o vanguardismo activista dos revolucionários franceses e reiterou o que sempre dissera: que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes. A ideia francesa de um governo que quer libertar os cidadãos dos modos de vida em que estes se sentem confortáveis – dos seus hábitos, da sua religião, das suas famílias – é uma ideia despótica abominável, “ainda pior que a república visionária de Platão”. Referindo-se a este novo despotismo, Burke escreveu que não podia admirar “a troca de uma espécie de barbárie por outra. [Não podia] congratular-se com a destruição de uma monarquia, mitigada pela civilidade, respeitadora das leis e dos costumes e atenta, talvez demasiado atenta à opinião pública, em prol de uma tirania de uma massa licenciosa, feroz e selvagem, sem leis, civilidade ou moral, e que, em vez de respeitar o entendimento geral da humanidade, se empenha insolentemente na modificação de todos os princípios e opiniões que até ao momento orientaram e moderaram o mundo, e em obrigá-los a uma conformidade com as suas concepções e acções (carta a Sir Hecules Langrishe, 1792).
Esta vertigem “libertadora” só podia degenerar em tirania, porque os novos inquilinos do poder veriam no seu governo uma missão nova, transformadora, que os velhos governos – mesmo as monarquias absolutas – nunca tinham imaginado. Querendo mudar tudo, o novo poder não poderia aceitar instituições intermédias e descentralizadas, como a família, as igrejas ou outras associações voluntárias. “É da natureza do despotismo – tinha dito Burke sobre os governos de corte de Jorge III – detestar o poder mantido por qualquer meio que não seja o seu próprio prazer momentâneo; e extinguir todas as posições intermédias entre a força ilimitada da sua parte e a debilidade absoluta por parte das pessoas.” Este vício do velho absolutismo real iria ser incrivelmente potenciado pelo novo despotismo revolucionário, avisou Burke. Robespierre foi a prova de que Burke tivera razão.
Liberdade e dever. Finalmente, Burke atribuiu as origens deste novo despotismo à intoxicação francesa com ideias filosóficas abstractas. “O mundo de fadas da filosofia não pode dirigir a acção política porque esta não é uma ciência a priori.” Em particular, Burke irritou-se com a ideia inovadora de que um regime liberal teria de se basear no princípio de que tudo depende da escolha do indivíduo. Desde logo, observou Burke, “os deveres não são voluntários”. E acrescentou que “o dever e a vontade são até termos contraditórios”. Acontece que, sem sentido do dever, não existe autodomínio. Ora, prosseguiu Burke, “todas as sociedades precisam algures de um poder de autodomínio. Quanto menos ele vier de dentro, mais terá de vir de fora.” Assim, Burke sustentou que “entre um povo geralmente corrupto a liberdade não pode existir por muito tempo”. E acrescentou que “as maneiras são mais importantes do que as leis. As maneiras corrompem ou purificam, exaltam ou rebaixam, barbarizam ou refinam, através de uma operação constante, persistente, uniforme e insensível, tal como o ar que respiramos”. Por isso também, Burke escreveu que “o rei pode fazer um nobre, mas não um gentleman”.
A liberdade inglesa persiste – continuou Burke, antecipando a “corrente de ouro” de Winston Churchill que aqui referimos no sábado passado – porque não se deixou contagiar pela “doença infecciosa da Revolução Francesa”. A tradição liberal inglesa não foi intoxicada pelas ideias abstractas e inovadoras da filosofia francesa. Burke elogiou o espírito inglês de continuidade e de herança, “o qual fornece um princípio seguro de conservação e um seguro princípio de transmissão; sem de todo excluir um princípio de melhoramento [?] Esta ideia de uma descendência liberal inspira-nos com um sentido de dignidade habitual e nativa [?] Desta forma a nossa liberdade torna-se uma liberdade nobre”.
O mistério inglês e a corrente de ouro. Começa talvez agora a revelar-se a chave do “mistério inglês”. Edmund Burke está no seu centro. Foi em Burke que Winston Churchill se inspirou quando disse que “é esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa”.
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Alexis de Tocqueville e as duas democracias
Alexis de Tocqueville foi um dos observadores mais argutos do fenómeno democrático e um dos críticos mais subtis da tradição política francesa – que contrastou com a inglesa e a americana. A sua obra-prima, “De la démocratie en Amérique”, foi publicada em França em dois volumes em 1835 e 1840. O livro obteve sucesso imediato, embora Tocqueville viesse a ser esquecido na sua França natal, até ser reabilitado por Raymond Aron, na segunda metade do século XX. No mundo de língua inglesa, pelo contrário, foi sempre considerado um clássico do pensamento político. Entre nós, a primeira tradução integral foi apenas publicada em 2000 (Cascais, Principia).
Aristocrata, católico, liberal. Alexis de Tocqueville nasceu a 29 de Julho de 1805 e morreu a 16 de Abril de 1859, antes de completar 54 anos. Descendia de uma antiga família aristocrática e católica da Normandia, os Clérel, que em 1661 tinham adoptado o nome de Tocqueville. O seu bisavô materno, Chrétien de Malesherbes, e o seu pai, Hervé de Tocqueville, foram presos durante a Revolução Francesa. O primeiro foi guilhotinado juntamente com uma irmã, uma filha, um genro e uma neta e respectivo marido. O pai, Hervé, foi poupado e libertado em 1794; os seus cabelos tinham ficado brancos aos 22 anos de idade.
Ainda assim, Tocqueville nunca foi partidário do absolutismo real anterior à Revolução Francesa. Era um admirador da monarquia constitucional britânica e da democracia americana. Tendo iniciado a sua carreira pública como magistrado, obteve autorização oficial para visitar a América, em 1831-1832, com o propósito de estudar o sistema penal americano. Após uma visita de apenas nove meses, conseguiu produzir o que ainda hoje é considerado o melhor livro sobre a democracia e sobre a América.
Tocqueville fez também breves incursões na acção política, para a qual reconheceria mais tarde não ser talhado. Foi várias vezes eleito deputado e chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros da França, entre 2 de Junho e 31 de Outubro de 1849. Em Dezembro de 1851, na sequência do golpe de estado de Louis-Napoléon Bonaparte, Tocqueville foi preso por um curto período. Tendo recusado jurar obediência ao novo regime, que considerava autoritário, foi privado de todos os cargos públicos. Após uma grave depressão, voltou à escrita e preparou o célebre livro “L’Ancien Régime et la Révolution” (edição portuguesa: Fragmentos, 1989) – uma análise da Revolução Francesa e uma crítica mordaz à cultura política centralista e iliberal das duas Franças: a revolucionária e a contra-revolucionária. O livro, cuja primeira parte é publicada em 1856, obteve um sucesso comparável ao do primeiro volume de “Da Democracia na América”.
Em 1857 é recebido em audiência pelo príncipe consorte britânico. Para regressar a França, o almirantado britânico põe à sua disposição um navio de guerra, uma forma de homenagem. Era o último grande sucesso da sua carreira pública. Morreria dois anos depois, sem ter podido concluir a segunda parte de “O Antigo Regime e a Revolução”.
Democracia: despótica ou liberal? No centro da reflexão tocquevilliana está a emergência da era democrática, entendida como a da igualdade de condições, por contraste com a desigualdade aristocrática. Tocqueville vê na democracia muitas vantagens, mas também muitos perigos, sobretudo os da centralização e do despotismo político. Observou que “os homens que vivem nos séculos de igualdade gostam naturalmente do poder central […] e julgarão que tudo o que lhes concedem estão a conceder a si próprios”. Ficou famoso o passo de Tocqueville que descreve o novo despotismo igualitário que ele pressentiu:
“Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, em busca de prazeres insignificantes e vulgares com que preenchem as suas almas. Cada um deles, pondo-se à parte, é como um estranho face ao destino dos outros; para ele, a espécie humana resume-se aos seus filhos e aos seus amigos; quanto ao resto dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-lhes, mas não os sente, ele só existe em e para si próprio e, se ainda lhe resta uma família, podemos dizer pelo menos que deixou de ter uma pátria.
Acima desses homens ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças. Será também possível poupar inteiramente aos cidadãos o trabalho de pensar e a dificuldade de viver? […] A igualdade preparou os homens para tudo isto, predispondo-o a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício.”
Democracia liberal na América. O despotismo centralizador não é, no entanto, o destino inevitável da democracia. Esta também pode ser liberal, em vez de despótica. Para Tocqueville, a democracia americana, herdeira da tradição inglesa, continha os elementos liberais capazes de conter os excessos da igualdade. Foi sobre eles que escreveu em “Da Democracia na América”.
Os ingredientes liberais que Tocqueville detecta na América são basicamente a descentralização política e administrativa, que começa no próprio governo local; a estrita independência do judiciário, começando no julgamento por júri; a liberdade de imprensa; a liberdade religiosa e a intensa religiosidade dos americanos, que naturalmente se combina com o espírito de liberdade. Todos estes factores contribuem para contrariar a centralização e o poder ilimitado.
Arte de associação. Tocqueville sublinhou um outro factor que raramente foi observado com tanta argúcia, antes ou depois dele: a “arte de associação” dos americanos.
“Os americanos de todas as idades, condições e tendências reúnem-se constantemente, não só em associações comerciais e industriais, nas quais todos participam, mas também em muitas outras de diversíssimos géneros: religiosas, morais, sérias, fúteis, muito gerais e muito particulares, enormes e ínfimas; os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, divulgar livros, enviar missionários para os antípodas; e é também assim que criam hospitais, prisões e escolas. Desde que se trate de evidenciar uma verdade ou desenvolver um sentimento através de um grande exemplo, ei-los que se associam. Sempre que, à cabeça de um novo empreendimento, possais ver em França o governo e na Inglaterra um grande senhor, podeis estar certos de que nos Estados Unidos encontrareis uma associação.”
Qual é o efeito prático desta arte de associação? É a criação, na época democrática, de uma espécie de “personalidades aristocráticas” (designação do autor) que possam constituir instituições mediadoras ou intermédias, de tipo democrático, entre o indivíduo e o Estado. É o que chamamos hoje sociedade civil.
Liberdade e religião. Não pode deixar de ser referido o aspecto mais saliente no contraste que Tocqueville estabelece entre os costumes dos americanos e dos franceses: a atitude face à religião.
Tocqueville começa por atribuir à religião um papel decisivo na elevação do olhar dos povos e na realização de grandes feitos seculares, mesmo em domínios que podem ser totalmente independentes da religião. Se tivermos em conta que Tocqueville detecta na era democrática uma forte pressão para o abaixamento do olhar, podemos compreender a importância que ele atribui à religião para contrabalançar e contrariar esse abaixamento.
Em segundo lugar, Tocqueville considera que a religião é fundamental para travar a voragem totalizadora do poder central na era democrática: os povos religiosos terão menos facilidade em ceder a sua liberdade ao despotismo igualitário porque sabem que a esfera política não será nunca única nem total – além dela existirá sempre a esfera espiritual. Por outras palavras, tal como a arte de associação, o autogoverno local, a descentralização administrativa, a liberdade de imprensa e de associação, a religião é fonte de pluralismo e liberdade numa era de paixão pela igualdade e pela centralização. Por isso, Tocqueville dirá que “é o despotismo, não a liberdade, que pode prescindir da fé”.
Tocqueville e Burke. Uma terceira razão pela qual a religião será condição para a salvaguarda da liberdade prende-se com a necessidade de auto-sustentação da liberdade. Edmund Burke, como recordámos aqui na semana passada, observara que qualquer sociedade precisa de um poder de autodomínio: quanto menos ele vier de dentro, isto é, dos indivíduos voluntariamente, mais acabará por vir de fora, de um poder despótico. Tocqueville observou o mesmo fenómeno e descobriu como a religião constituía, entre os americanos, uma fonte de equilíbrio que os libertava da ameaça de uma tutela despótica:
“Já disse o suficiente para esclarecer o verdadeiro carácter da civilização anglo-americana. Ela é o produto de dois elementos perfeitamente distintos, que noutros locais se combateram frequentemente mas que, de certo modo, a América conseguiu incorporar um no outro, combinando-os maravilhosamente: refiro-me ao espírito religioso e ao espírito de liberdade. […] A liberdade vê na religião a companheira das suas lutas e dos seus triunfos, o berço da sua infância, a fonte divina dos seus direitos. Considera-a a salvaguarda dos costumes e estes garantes das leis e da sua própria durabilidade.”
Em França, pelo contrário, Tocqueville encontra uma crença dogmática na incompatibilidade entre liberdade e religião. Como sublinhou Raymond Aron, vê nessa hostilidade mútua o factor fundamental da precariedade da liberdade francesa.
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Madison e Rousseau: dois conceitos de democracia
James Madison procurava manter na América a tradição inglesa de um governo limitado, nas novas condições da chamada soberania popular. Rousseau, por seu turno, imaginava que, sendo o povo soberano, o governo dele emanado devia ser absoluto e ilimitado
Os nossos manuais escolares atribuem a origem das democracias ocidentais à Revolução Francesa de 1789. É frequente ouvir essa referência em debates públicos. No entanto, ela não é exacta.
Em primeiro lugar, porque antes da Revolução Francesa ocorrera a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Inglesa de 1688. Em segundo lugar, porque as democracias mais antigas e duradouras inspiraram-se na experiência americana e inglesa, não na francesa. Em terceiro lugar, porque o modelo francês inspirou sobretudo experiências radicais não propriamente democráticas: o republicanismo radical da América Latina e da I República portuguesa (1910-1926), bem como a revolução soviética de 1917.
Um exercício comparativo A explicação deste equívoco é simples, ainda que pouco conhecida: embora possa ser dito que as três revoluções (inglesa, americana e francesa) visavam igualmente romper com o absolutismo monárquico, a verdade é que o “novo regime” que propunham não era o mesmo. Nos casos inglês e americano, tratava-se de restaurar um governo limitado, fundado no consentimento dos eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por um novo absolutismo, popular e republicano.
Esta diferença crucial pode ser observada pela leitura comparativa de duas das obras que mais influenciaram a Constituição Americana, por um lado, e a Revolução Francesa, por outro. No caso americano, temos “The Federalist Papers”, uma colecção de ensaios que Alexander Hamilton, John Jay e James Madison publicaram em jornais da época, sob o pseudónimo comum de “Publius”, com vista à defesa do projecto constitucional de 1787. No caso francês, temos um dos livros que mais influenciou os revolucionários de 1789, “Du contrat social” de Jean-Jacques Rousseau, originalmente publicado em 1762.
Cepticismo ou esquema de perfeição? Uma boa forma de começar este exercício reside em comparar o propósito anunciado por cada autor para a sua obra. Comecemos por escutar Rousseau:
“Como encontrar uma forma de associação que defenda a pessoa e bens de cada membro com a força colectiva de todos, e sob a qual cada indivíduo, enquanto se une aos outros obedece somente a ele próprio, mantendo-se tão livre como anteriormente?. Este é o problema fundamental ao qual o contrato social dá a solução”. (“O Contrato Social”, Livro I, capítulo 6).
O objectivo de Rousseau é encontrar um esquema de perfeição, uma solução política perfeita, em que cada um obedece a todos sem obedecer a ninguém, permanecendo tão livre sob o governo civil quanto era no estado de natureza. Isto vai ter tremendas implicações, como veremos a seguir, porque Rousseau vai defender que, se o povo for soberano, não haverá ameaças à liberdade das pessoas.
Vejamos agora o contraste com o tom sóbrio e céptico de James Madison, que viria a ser o quarto presidente norte-americano e que foi um dos autores dos “Federalist Papers”:
“Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados; e em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções adicionais.” (“O Federalista” 51)
James Madison parece estar a responder directamente ao projecto utópico de Rousseau. Ele afasta imediata e explicitamente qualquer sonho de perfeição política. Porque os homens não são anjos, a perfeição política está-nos vedada.
Governo limitado ou vontade geral suprema? Madison fala de uma “grande dificuldade” em resolver os seus dois problemas e adverte: “A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções adicionais.” Isto significa que Madison não acredita que um governo emanado do povo deva ser isentado de controlos adicionais. Por esta razão, Madison vai imediatamente preocupar-se com a criação de mecanismos de controlo sobre o governo popular:
“Mas a grande segurança contra a gradual concentração dos vários poderes nos mesmos departamentos consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à invasão dos outros. A provisão para a defesa deve, neste como em todos os outros casos, ser proporcional ao perigo de ataque. A ambição deve ser usada para contrariar a ambição.” (“O Federalista” 51).
Temos aqui uma perspectiva muito diferente da de Rousseau, a quem pertence a passagem seguinte:
“Se, então, eliminarmos do pacto social tudo que não lhe seja essencial, verificamos que se reduz ao seguinte: ?cada um de nós coloca na comunidade a sua pessoa e todos os seus poderes, sob a direcção suprema da vontade geral; e, como um corpo, incorporamos cada membro como uma parte indivisível do todo?” (“O Contrato Social”, Livro I, cap. 6).
Equilíbrio de poderes ou um todo indivisível? A ideia de Rousseau é claramente oposta à de Madison. Em vez de separação de poderes, ele fala de um poder único e supremo da vontade geral. Em vez de equilíbrio de poderes, ele sonha com um todo unitário e indivisível. Estas ideias ficam ainda mais claras na passagem seguinte:
“Estes artigos de associação, entendidos correctamente, são redutíveis a um único, nomeadamente a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os seus direitos, para toda a comunidade. Assim, em primeiro lugar, à medida que cada indivíduo se dá em absoluto, as condições são as mesmas para todos, e precisamente porque são as mesmas para todos, não é do interesse de ninguém tornar as condições onerosas para os outros.” (“O Contrato Social”, Livro I, cap. 6).
Rousseau não podia ser mais claro. O seu contrato de associação exige “a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os seus direitos, para toda a comunidade” – e esta comunidade é sempre pensada como um todo unitário. Uma vez que se trata de uma associação entre iguais – e as condições são iguais para todos – ninguém terá interesse em prejudicar os outros. Com este raciocínio puramente abstracto, Rousseau introduz o culto da igualdade que iria marcar as tragédias políticas modernas. O poder dos iguais é um poder perfeito e, por isso, deve ser ilimitado e sem partilha, sem apelo:
“Em segundo lugar, uma vez que a alienação é incondicional, a união é tão perfeita quanto pode ser, e nenhum associado individual continuará a ter quaisquer direitos a reclamar.” (“O Contrato Social”, Livro I, cap. 6)
Pluralismo ou monismo? Finalmente, Rousseau vai fechar o seu esquema de perfeição com outra abstracção igualitária, cuja consequência política será de novo a ideia de um poder ilimitado do todo sobre as partes. E as partes, por sua vez, não só ficariam tão livres como antes, mas ainda ficariam com mais poder:
“Finalmente, uma vez que cada homem se dá a todos, ele dá-se a ninguém; e, uma vez que não há qualquer associado sobre o qual ele não ganhe os mesmos direitos que os outros ganham sobre ele, cada homem recupera o equivalente a tudo o que perdeu, e na troca adquire mais poder para preservar o que ele possui.” (“O Contrato Social”, Livro I, cap. 6)
De novo, estas palavras devem ser contrastadas com o cepticismo prudente de Madison e a sua preocupação permanente de limitar, dividir e controlar todo o poder:
“Esta política de fornecer, através de interesses opostos e rivais, a falta de melhores motivos, pode ser encontrada em todo o sistema de relações humanas, privadas e públicas. Vemos isto particularmente exposto em todas as distribuições de poder subordinadas, onde o objectivo constante é dividir e organizar os vários departamentos de modo a que cada um possa ser um freio sobre o outro – que o interesse privado de cada indivíduo possa ser uma sentinela sobre os direitos públicos. Estas invenções de prudência não podem ser um requisito menor na distribuição dos poderes supremos do Estado.” (“O Federalista” 51)
Contra o despotismo popular Esta preocupação de Madison é ainda maior quando o poder reside no povo, porque, num governo popular, é natural que o poder se concentre na esfera legislativa. Neste caso, Madison insiste na divisão do lesgislativo, o que conduzirá à criação de duas Câmaras – o Senado e a Câmara dos Representantes, no caso americano, um pouco à semelhança da Câmara dos Lordes e dos Comuns, no caso inglês, embora, no caso americano, ambas sejam eleitas:
“Mas não é possível dar a cada departamento um igual poder de autodefesa. Em governos republicanos a autoridade legislativa predomina necessariamente. O remédio para este inconveniente é dividir a legislatura em diferentes ramos; e torná-los, por diferentes modos de eleição e diferentes princípios de acção, tão pouco conectados entre si quanto a natureza das suas funções comuns e a sua dependência comum na sociedade possa admitir. ” (“O Federalista” 51)
Em suma, podemos dizer que James Madison procurava manter a tradição inglesa de um governo limitado nas novas condições da chamada soberania popular. Rousseau, por seu turno, imaginava que, sendo o povo soberano, o governo dele emanado devia ser absoluto.
É isto que fica patente na seguinte passagem, verdadeiro exemplo de delírio despótico em nome dos iguais: “Agora, como o soberano é formado integralmente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem nem poderá ter qualquer interesse contrário ao deles; deste modo, o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é impossível para um corpo desejar magoar todos os seus membros e, como veremos, não pode magoar qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de o ser, é sempre tudo o que deve ser” (“O Contrato Social”, Livro I, cap. 7).
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Ralf Dahrendorf: um germano-britânico invulgar
Ideólogos de obediências várias desprezaram o posicionamento intelectual de Dahrendorf, acusando-o de contraditório. Mas talvez esse posicionamento contraditório seja característico do “mistério inglês”
Esta série de ensaios sobre “o mistério inglês” vai agora, bem como nos próximos quatro ensaios, revisitar grandes figuras do século 20 que se bateram contra o nazismo e o comunismo e escolheram a nacionalidade inglesa ou americana. Os próximos ensaios falarão de Friedrich Hayek (1898-1992), Karl Popper (1902-1994), Isaiah Berlin (1909-1997) e Leo Strauss (1898-1973). Hoje vamos começar, por Ralf Dahrendorf.
ALEMÃES ANGLÓFILOS. Ralf Dahrendorf nasceu a 1 de Maio de 1929 em Hamburgo, a cidade mais inglesa da Alemanha, como ele próprio gosta de recordar. Também os seus pais nasceram em Hamburgo e os avós, maternos e paternos, foram para Hamburgo vindos de Anglia – esse território muito desejado entre a Alemanha e a Dinamarca de onde terão partido os Anglo-Saxões rumo às ilhas Britânicas.
Em meados de 1920, aquela que viria a ser a mãe de Dahrendorf preparava cuidadosamente uma primeira visita a Inglaterra. No último minuto, todavia, uma doença súbita impediu-a de concretizar a viagem e levou-a a ficar numa pequena localidade perto de Hamburgo, conhecida como Hostein Switzerland, onde conheceu o futuro marido, Gustav Dahrendorf. Ambos eram admiradores da Inglaterra e ambos decidiram – como modesto substituto da viagem falhada – que dariam aos filhos nomes que pudessem ser igualmente usados na Alemanha e em Inglaterra. Daí os nomes Ralf – que se escreve, à alemã, com f, e não com ph – e Frank, o nome do irmão de Ralf Dahrendorf.
DOIS TOTALITARISMOS. Gustav Dahrendorf foi líder do Partido Social-Democrata durante a República de Weimar e exerceu actividade política ao longo de toda a vida. Participou na resistência ao nazismo e foi preso em 1933, depois em 1938, e novamente a 20 de Julho de 1944, data da tentativa de assassinato de Hitler.
Em Novembro de 1944, com 15 anos, Ralf Dahrendorf foi preso pela Gestapo e enviado para um campo de concentração, de onde foi libertado em 1945, no dia em que as tropas soviéticas chegaram. No ano seguinte, em 1946, o pai do jovem Ralf viria de novo a ser quase preso na Alemanha de Leste, desta vez pelos comunistas, por se recusar a participar nas chamadas negociações com vista à unificação forçada do Partido Social-Democrata com o Partido Comunista. Esta dupla experiência do totalitarismo – nazi e comunista – e da resistência contra eles fundaram o comprometimento de Dahrendorf com a causa da liberdade e preveniram–no contra as seduções ideológicas:
“Sou kantiano, ou, se preferirem, popperiano, o que equivale a dizer que, para mim, um dos aspectos fundamentais da vida humana é que o homem não pode responder a todas as questões. Se alguém quer conhecer a resposta, deve poder duvidar do que dizem. Vivemos numa condição fundamental de incerteza […] e isso deriva do facto de nenhum homem ser Deus” [“O Liberalismo e a Europa: Entrevista com Vicenzo Ferrari”, Editora Universidade de Brasília, 1983, pp. 13-14].
LIBERDADE E LEI. Outra experiência desta mesma época marcaria o jovem Dahrendorf. Nos dias que se seguiram à derrocada do regime nazi, e antes que novas instituições tivessem sido criadas, o caos invadiu as ruas. Isto levou Dahrendorf a observar que não existe liberdade sem lei, sem regras e sem instituições capazes de aplicar essas regras. Num livro que publicou décadas depois, já nos anos 80, intitulado “Law and Order”, Dahrendorf escreveria que o sonho rousseauísta de um mundo sem constrangimentos é o caminho mais curto para o pesadelo hobbesiano do Leviatã, o Estado todo- -poderoso.
Também num livro ulterior (“After 1989: Morals, Revolution and Civil Society”, 1997) Dahrendorf regressa a este tema que é particularmente impopular entre os intelectuais liberais dos nossos dias: a crítica do igualitarismo e do relativismo. Nele Dahrendorf descreve uma “concepção extraviada de democracia”:
“Pensa-se que os valores “emergem” de uma ou de outra forma, ao libertar as pessoas de restrições, encorajando-as a revelarem o que de melhor possuem em si, juntando-as para que comuniquem. De algum modo, a verdade, a bondade e a beleza surgirão, como géiseres no solo da Islândia. Isto é de Habermas (ainda que caricaturado) e, antes deste, de Rousseau. Mas está errado… A abordagem do “porque não?” relativamente ao que as pessoas fazem, dizem, querem e parecem traduz–se numa aproximação da anomia, a ausência de regras. Contudo, a anomia, tal como a entropia, em última análise conduz à morte.”
SOCIOLOGIA DO CONFLITO. Em 1952, Dahrendorf partia para Inglaterra, para a London School of Economics, onde faria o seu segundo doutoramento, desta vez em Sociologia, depois de se ter licenciado e doutorado em Filosofia na Universidade de Hamburgo.
Após o doutoramento na LSE, Dahrendorf ingressou no Instituto de Investigações Sociais de Frankfurt, dirigido pelos neomarxistas da chamada escola crítica de Max Horkheimer e Theodor Adorno. “Fiquei lá exactamente oito semanas”, explica Dahrendorf. “Depois das primeiras quatro compreendi que reinava uma atmosfera opressiva e autoritária que não me agradava.”
Em 1959 é publicado o seu clássico “Class and Class Conflict in Industrial Societies”, no qual Dahrendorf revê criticamente as principais teorias de estratificação social e desenvolve a sua própria perspectiva, que ficaria conhecida como “sociologia do conflito”. São as seguintes as palavras finais do livro:
“O monismo totalitário baseia-se na ideia de que o conflito pode e deve ser eliminado, de que uma ordem social e política homogénea e uniforme é a situação desejável. Essa ideia é tão perigosa quanto errónea nas suas premissas sociológicas. Pelo contrário, o pluralismo das sociedades livres baseia-se no reconhecimento e na aceitação do conflito social.”
EUROPEÍSTA CÉPTICO. Entre 1967 e 1969, Dahrendorf lidera a renovação do Partido Liberal alemão, que culminaria na coligação entre liberais e social-democratas, o célebre governo Willy Brandt-Walter Scheel, de que Dahrendorf fez parte como ministro dos Assuntos Parlamentares.
Em 1970 Ralf Dahrendorf foi nomeado comissário alemão na Comissão Europeia, em Bruxelas, onde participou activamente nas negociações de adesão da Inglaterra, mas da qual se afastou em 1974, desapontado com a ausência de accountability nas estruturas supranacionais da Comunidade Europeia.
Dahrendorf foi sempre um europeísta convicto, mas um europeísta de tipo especial, céptico relativamente aos grandes projectos federadores e à subestimação das realidades profundas do Estado-nação.
Acima de tudo, é um internacionalista multilateral. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, tornar-se-ia um empenhado defensor da prioridade do alargamento da União Europeia aos países recém-libertados das ditaduras comunistas.
REGRESSO A INGLATERRA. Depois de se demitir da Comissão Europeia, Dahrendorf foi convidado para reitor da London School of Economics. Dirigiu-a nos anos difíceis de 1974 a 1984, restituindo-lhe o prestígio de épocas passadas. A nobre instituição ficou-lhe grata e no 100.o aniversário convidou Dahrendorf para escrever a história dos primeiros cem anos. O resultado é um magnífico volume de 584 páginas, editado pela Oxford University Press em 1995.
Oxford seria o destino seguinte de Ralf Dahrendorf, que, entretanto, fora agraciado pela rainha de Inglaterra com um título em 1981. Em 1987, após dez anos à frente da LSE, Dahrendorf tomaria o posto de warden do St. Antony?s College, na Universidade de Oxford, por mais dez anos, até Julho de 1997. Foi nesse período que tive o privilégio de ser orientado por ele no meu doutoramento. O mês passado, a 1 de Maio, regressei a St. Anthony’s para um fim de semana de homenagem aos 80 anos de Lorde Dahrendorf.
Em 1998, Dahrendorf adoptaria a cidadania britânica, passando a poder ser tratado pelo título de Sir. Em 1994, Sir Ralf ingressaria na Câmara dos Lordes como Lorde Dahrendorf of Clare Market in the City of Westminster. Foi aí que dirigiu o célebre comité sobre “Wealth creation and social cohesion in a free society”, do qual foi publicado em 1995 um relatório que muito terá inspirado o programa do New Labour de Tony Blair.
DAHRENDORF E BURKE. Uma excelente introdução à obra de Dahrendorf pode ser encontrada no seu livro de 1997, intitulado “After 1989: Morals, Revolution and Civil Society”.
O primeiro ensaio, “As revoluções devem fracassar?”, é uma crítica elegante ao utopismo revolucionário e uma defesa da tradição anglo-americana das “revoluções relutantes” (1688 e 1776), por oposição à revolução utópica ocorrida em França em 1789. Neste capítulo é estabelecido o tom do “liberalismo especial” de Dahrendorf: aberto à mudança, mas respeitador da tradição; a favor da escolha individual, mas contra o individualismo desbragado; firmemente do lado dos mercados livres e da propriedade privada, mas oposto à destruição do “terceiro sector”, que o autor encara como indispensável a uma sociedade civil forte.
Dahrendorf apresenta-se como “um intelectual que continua a querer convencer os outros da “singularidade da verdade”, sem confiar em ninguém que afirme possuí-la” (p. 112):
“Falar da singularidade da verdade é uma outra forma de afirmar que existem princípios universais, não apenas no que respeita ao conhecimento mas também em relação à moral. Não poderemos nunca, contudo, ter a certeza de os haver encontrado. Por conseguinte, devemos ser tão cautelosos relativamente ao dogmatismo fundamentalista como em relação à libertinagem dos relativistas.” (p. 122)
Ideólogos de obediências várias desprezaram o posicionamento intelectual de Dahrendorf, acusando-o de contraditório. Mas talvez esse posicionamento seja uma expressão do “mistério inglês”. Talvez ele revele a profunda sabedoria de um gentleman britânico de origem alemã, cujo sentido de equilíbrio e moderação está bem ilustrado na famosa frase de Edmund Burke, que Dahrendorf cita no final do livro de 1990, “Reflexões sobre a Revolução na Europa”:
“Tenho pouco para recomendar as minhas opiniões, excepto que se baseiam em observação demorada e muita imparcialidade. Vêm de alguém que dedicou quase toda a sua vida pública à defesa da liberdade dos outros. Alguém que, quando o equilíbrio da embarcação em que viaja se encontra ameaçado por sobrecarga de um dos lados, procura transportar o pequeno peso dos seus argumentos para o lado que possa preservar o equilíbrio.”
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Karl Popper: A sociedade aberta e os seus inimigos
O governo representativo ou popular surge, para Popper, como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos. O positivismo ético, alertou também Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não conhece limites morais.
Karl Raimund Popper nasceu em 1902, em Viena, e faleceu em 1994 em Kenley, Sul de Londres. Bertrand Russell e Isaiah Berlin consideraram que a sua crítica ao marxismo fora devastadora e definitiva. Russell chegou mesmo a dizer que o livro de Popper “The Open Society and Its Enemies”, de 1945, era uma espécie de Bíblia das democracias ocidentais.
É um facto que, em inúmeras democracias ocidentais, os líderes políticos do centro-esquerda e do centro-direita se reclamaram da influência popperiana. Na Alemanha Federal, o chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o chanceler democrata-cristão Helmut Khol prefaciaram obras sobre ou de Karl Popper. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, entre outros, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o prazer de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Sir Karl, em Kenley, em 1992 e 1993, respectivamente.
Winston Churchill. Até 1935, Karl Popper viveu basicamente em Viena de Áustria. Depois de uma formação académica muito variada e de uma esporádica passagem pelo marxismo, quando tinha dezasseis anos, doutora-se em Filosofia em 1928. Em 1934 publica o seu primeiro livro, que se tornaria um clássico da filosofia da ciência: “A Lógica da Descoberta Científica”.
Apesar de ter sido publicado em alemão, o livro teve impacto imediato em Inglaterra e gerou vários convites para palestras por parte de universidades inglesas. Daí resultou um périplo inglês de nove meses, em 1935-1936. Esses nove meses “tinham sido uma revelação e uma inspiração”, conta Popper na sua “Autobiografia Intelectual” [Esfera do Caos, 2008]: “A honestidade e a decência das pessoas e o seu forte sentimento de responsabilidade política deixaram em mim a mais forte impressão.”
Ainda assim, Popper observou com preocupação que, mesmo em Inglaterra, ninguém nessa época parecia compreender a ameaça de Hitler – com excepção da voz corajosa e isolada de Winston Churchill. Desde essa altura, Karl Popper tornou-se um admirador incondicional de Churchill.
Nova Zelândia. Em Fevereiro de 1937, Popper embarcou para a Nova Zelândia, onde obtivera um lugar de professor em Christ Church. Tinha acabado de declinar um convite de Cambridge em benefício do seu amigo Fritz Waisman, já nessa época perseguido pelos nazis.
Apesar da tremenda carga de horas lectivas a que foi submetido na Nova Zelândia, Popper lançou-se ao trabalho e produziu duas obras magistrais – “A Pobreza do Historicismo” e “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos” – entre 1938 e 1943. Apresentou-os como o seu “esforço de guerra” contra os totalitarismos nazi e comunista.
Regresso a Londres. Ainda em 1945, Karl Popper recebe um convite de Friedrich Hayek para leccionar na London School of Economics. Desta vez o casal Popper aceitou o convite sem pestanejar. Em Janeiro de 1946 chegavam a Inglaterra, onde permaneceriam até ao final da vida, tornando-se orgulhosos e felizes cidadãos britânicos.
Em 1964, Karl Popper receberia da rainha o título de Sir. Faleceu em 1994, na sua residência de Kenley, no Sul de Londres, onde tive o privilégio de o visitar regularmente entre 1990 e 1994, durante o meu doutoramento em Oxford, ao qual me candidatara com o seu apoio.
Todos os cisnes são brancos? Na base da filosofia do conhecimento de Popper, originalmente apresentada no seu livro “Lógica da Descoberta Científica”, está uma observação muito simples que é costume designar por “assimetria dos enunciados universais”. Esta assimetria reside no facto de que, enquanto nenhum número finito de observações (positivas) permite validar definitivamente um enunciado universal, basta uma observação (negativa) para o invalidar ou refutar. Por outras palavras, e citando um exemplo que se tornou clássico: por mais cisnes brancos que sejam encontrados, nunca podemos ter a certeza de que todos os cisnes são brancos (pois amanhã alguém pode encontrar um cisne preto). Em contrapartida, basta encontrar um cisne preto para ter a certeza de que é falso o enunciado universal “todos os cisnes são brancos”.
Karl Popper fundou nesta assimetria a sua teoria falibilista do conhecimento. Argumentou que o conhecimento científico não assenta no chamado método indutivo, mas numa contínua interacção entre conjecturas e refutações. Enfrentando problemas, o cientista formula teorias conjecturais para tentar resolvê-los. Essas teorias serão então submetidas a teste. Se forem refutadas, serão corrigidas (ou simplesmente eliminadas) e darão origem a novas teorias, que por sua vez voltarão a ser submetidas a teste. Mas, se não forem refutadas, não serão consideradas provadas. Serão apenas corroboradas, admitindo-se que no futuro poderão ainda vir a ser refutadas por testes mais rigorosos. O nosso conhecimento é, por isso, fundamentalmente conjectural e progride por ensaio e erro: “Sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Mas podemos aprender com eles.”
A superstição marxista. Entre as múltiplas consequências desta visão do progresso do conhecimento encontram-se duas que terão particular importância para a filosofia política e moral de Popper.
Em primeiro lugar, o chamado critério de demarcação entre asserções científicas e não científicas: serão asserções científicas apenas aquelas que sejam susceptíveis de teste, isto é, de refutação.
Este ponto será de crucial importância para a crítica de Popper ao chamado historicismo marxista. Marx anunciara como lei científica da história a inevitável passagem do capitalismo ao socialismo e depois ao comunismo. Mas não definira qualquer horizonte temporal para essa previsão. Isso na verdade significa que a previsão não é susceptível de teste. Trata-se por isso apenas de uma profecia, uma superstição em nome da ciência.
Sociedade aberta. Uma segunda consequência da epistemologia de Popper reside na centralidade da liberdade de crítica. A possibilidade de criticar uma teoria, de a submeter a teste e de tentar refutá-la, é condição indispensável do progresso do conhecimento.
É aqui que Popper vai fundar a distinção fundamental entre sociedade aberta e sociedade fechada. Na primeira existe espaço para a liberdade de crítica e para a gradual alteração ou conservação de leis e costumes através da crítica racional. Na segunda, pelo contrário, leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à avaliação pelos indivíduos. No capítulo 10 da obra “A Sociedade Aberta e os seus Inimigos” [Fragmentos, 1990], Karl Popper desenvolve uma poderosa e emocionada defesa do ideal da sociedade aberta, fazendo recuar as suas origens à civilização comercial, marítima, democrática e individualista do iluminismo ateniense do século V a. C. – que o autor contrasta duramente com a tirania colectivista e anticomercial de Esparta.
Contra a soberania popular. Sendo um intransigente defensor das democracias liberais, Popper é, contudo, um crítico contundente das teorias usualmente associadas à democracia, em particular a herdada de Rousseau – que entende a democracia como o regime fundado na chamada “soberania popular”.
Popper começa por observar que esta teoria da “soberania popular” se inscreve numa tradição de definição do melhor regime político em termos da resposta à pergunta “quem deve governar?”. Mas esta pergunta, prossegue o autor, conduzirá sempre a uma resposta paradoxal. Se, por exemplo, o melhor regime for definido como aquele em que um – talvez o mais sábio, ou o mais forte, ou o melhor – deve governar, então esse um pode, segundo a definição do melhor regime, entregar o poder a alguns ou a todos, dado que é a ele que cabe decidir ou governar.
Chegamos então a um paradoxo: uma decisão conforme à definição de melhor regime conduz à destruição desse mesmo regime. Este paradoxo ocorrerá qualquer que seja a resposta à pergunta “quem deve governar?” (um, alguns, ou todos reunidos em colectivo) e decorre da própria natureza da pergunta – que remete para uma resposta sobre pessoas e não sobre regras que permitam preservar o melhor regime.
Estado limitado. A teoria da democracia de Popper vai então decorrer da resposta a outro tipo de pergunta: não sobre quem deve governar, mas sobre como evitar a tirania, como garantir a mudança de governo sem violência. O meio para alcançar este objectivo residirá então num conjunto de regras que permitam a alternância de propostas concorrentes no exercício do poder e que impeçam que, uma vez chegadas ao poder, qualquer delas possa anular as regras que lhe permitiram lá chegar.
O governo representativo ou democrático surge então como uma, e apenas uma, dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as garantias legais – numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei. Nesta perspectiva, o governo representativo ou popular surge como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos.
Inimigos da sociedade aberta. Entre os inimigos da sociedade aberta, Popper aponta o positivismo ético, um elemento fundamental, embora pouco notado, do marxismo e do nazismo. O positivismo ético “sustenta não existirem outras normas para além das leis que foram realmente consagradas (ou positivadas) e que portanto têm uma existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação”.
O problema óbvio com esta teoria é que ela impede qualquer tipo de desafio moral às normas existentes e qualquer limite moral ao poder político. Se não existem padrões morais além dos positivados na lei, a lei que existe é a que deve existir. Esta teoria conduz ao princípio de que a força é o direito. Como tal, opõe-se radicalmente ao espírito da sociedade aberta: esta funda-se, como vimos, na possibilidade de criticar e gradualmente alterar ou conservar leis e costumes. O positivismo ético, ao decretar a inexistência de valores morais para além dos contidos nas normas legais realmente existentes, conduz à desmoralização da sociedade e, por essa via, à abolição do conceito de liberdade e responsabilidade moral do indivíduo.
Este é talvez um dos aspectos mais incompreendidos da obra de Popper. A ideia de “abertura” foi captada por modas e teorias intelectuais relativistas que Popper na verdade condenara como inimigos da sociedade aberta. O positivismo ético, alertou Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não reconhece limites morais.
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Friedrich A. Hayek: A Constituição da Liberdade
Por que razão terá Churchill citado Hayek na campanha eleitoral de 1945, em que foi derrotado? Talvez porque ambos quisessem opor-se ao crescimento do controlo governamental sobre a vida social, civil e económica das nossas sociedades livres.
A figura e a obra de Friedrich Hayek (1898-1992) estão associadas às principais encruzilhadas intelectuais do século 20. Mas a maior parte da sua vida foi rodeada pela hostilidade da opinião dominante: ousou enfrentar Keynes quando os economistas começavam a converter-se ao keynesianismo; demonstrou a impossibilidade da planificação central quando esta parecia poder substituir com vantagem as economias de mercado; chamou Karl Popper para a London School of Economics quando este foi ostracizado pela influência marxista dominante; fundou a Sociedade de Mont Pelerin, um clube de liberais então marginalizados, em que hoje dominam os prémios Nobel da Economia.
Ele próprio acabaria por receber o Nobel da Economia em 1974, uma espécie de sintoma de que as suas ideias estavam finalmente a merecer reconhecimento. Na década de 1980, Ronald Reagan e Margaret Thatcher reclamaram a sua doutrina como inspiração das políticas que praticavam. E, em 1991, o presidente George Bush pai conferiu-lhe a Medalha da Liberdade. Mas Hayek nunca se envolveu directamente na acção política.
O caminho para a servidão. “The Road to Serfdom”, publicado em Londres em 1944 e traduzido em português em 1977, [foi reeditado este ano pelas Edições 70], foi o livro que celebrizou Hayek aos olhos da opinião pública. Milhões de exemplares foram e continuam a ser vendidos nas mais diversas línguas.
A obra é dedicada aos “socialistas de todos os partidos”, e constitui um refrescante apelo aos progressistas para que redescubram uma velha e desprezada tradição progressista: a tradição liberal.
Na linha do que Karl Popper escreveria no ano seguinte em “The Open Society and its Enemies”, Hayek põe em relevo a matriz intelectual comum do autoritarismo de esquerda e de direita, nomeadamente nas suas vertentes nacional- -socialista e marxista. Mas acrescenta que esses produtos extremos do pensamento iliberal são resultado de uma evolução gradual, em que os ideais fundadores da civilização liberal tinham sido quase imperceptivelmente substituídos por princípios opostos. O colectivismo e o planismo, a paixão pela organização do todo, em detrimento da autonomia das partes, tendem a ocupar no coração de muitos progressistas o lugar que antes ocupavam o “liberalismo e a democracia, o capitalismo e o individualismo, o comércio livre e todas as formas de internacionalismo, o amor pela paz”.
O livro de Hayek foi recebido com indignação e desprezo pela intelligentsia europeia, embora não tanto pela norte–americana. Mas John Maynard Keynes – cujo intervencionismo Hayek acusava de involuntariamente conduzir a um sistema autoritário – escreveu a Hayek manifestando o seu acordo de fundo com os princípios enunciados na obra, embora não concordasse com todas as conclusões.
Constituição da liberdade. Em 1960, Hayek publica “The Constitution of Liberty”, a meu ver a sua obra principal. É particularmente importante pela definição e pela justificação da liberdade, bem como pela reformulação da clássica associação liberal entre a liberdade e o primado da lei.
A definição hayekiana de liberdade – tal como a dos liberais clássicos – é negativa: ausência de coerção por terceiros. Deve ser distinguida da concepção positiva que vê a liberdade como capacidade ou poder de um indivíduo para fazer o que deseja.
Hayek sustenta que a liberdade é não só o primeiro valor como a fonte e a condição da maioria dos outros valores morais. A liberdade é o primeiro valor porque, em primeiro lugar, é a condição para que cada indivíduo possa assumir a sua capacidade humana de pensar e avaliar, de escolher os seus próprios fins, em vez de ser apenas um meio para outros atingirem os seus fins.
Em segundo lugar, porque sabemos pouco: só um amplo campo de experimentação – aberto a iniciativas individuais que são por princípio autorizadas, independentemente da concordância da maioria – permite explorar o desconhecido e reduzir a nossa ignorância. Finalmente, a liberdade tem também um valor instrumental. Talvez pelas duas razões anteriores, só ela permite a criação da riqueza material que se tornou distintiva das civilizações que souberam preservá-la.
Este último aspecto constitui aliás a base da defesa inovadora do mercado livre que celebrizou Hayek. Em vez de se circunscrever ao tradicional argumento da concorrência, Hayek defendeu o mercado como mecanismo de descoberta e inovação, pela sua capacidade única de tratamento de informação descentralizada entre milhões de indivíduos que utilizam o melhor dos seus conhecimentos para perseguir os seus próprios objectivos. Nenhum sistema centralizado conseguirá alguma vez lidar com uma quantidade de informação sequer comparável com a que é a cada instante processada pelo mecanismo impessoal e descentralizado do mercado. Este é também um dos argumentos decisivos de Hayek contra as interferências governamentais no sistema de sinais – preços e salários – constitutivos do mercado livre. E foi o seu argumento decisivo para demonstrar a inviabilidade da planificação central.
Ordem espontânea. Na década de 1970, Hayek publica os três volumes de Law, “Legislation and Liberty” (respectivamente em 1973, 1976 e 1979), nos quais desenvolve a distinção crucial entre ordem espontânea e organização: enquanto na primeira os indivíduos apenas obedecem a regras gerais de boa conduta iguais para todos e independentes de propósitos particulares, numa organização os indivíduos estão integrados numa comunidade de propósitos e obedecem a comandos específicos que visam alcançá-los.
A sociedade liberal é uma ordem espontânea em que as leis são basicamente expressão de regras de boa conduta há muito enraizadas na opinião popular e que os juízes apenas interpretam e tornam expressas. Não podem ser criadas arbitrariamente com o desígnio de atingir objectivos particulares.
Estas leis devem por isso ser distinguidas da legislação: esta inclui as medidas parcelares tomadas pelo governo e pelo parlamento, que devem apenas regular aqueles delimitados domínios colectivos em que o governo é chamado a intervir.
Civilização da liberdade. No seu livro de 1944, “O Caminho para a Servidão”, Hayek anteviu que as lições da Segunda Guerra Mundial iam ser mal entendidas no pós-guerra. E a mais gritante expressão desse mal-entendido terá sido a derrota eleitoral de Churchill em 1945, depois de ter vencido a guerra. Winston Churchill aliás citou este livro de Hayek na sua campanha eleitoral de 1945 (o que talvez não tenha sido a melhor táctica eleitoral). Ambos queriam opor-se ao crescimento do controlo governamental sobre a vida social, civil e económica das nossas sociedades livres.
A referência a Winston Churchill é muito adequada neste particular, a mais de um título. Se há algo que considero verdadeiramente tocante neste livro de Hayek, é sem dúvida a sua profunda e sincera admiração pela tradição política e cultural inglesa. Até meados-finais do século 19, a admiração pela livre Inglaterra era timbre das pessoas educadas. Podiam estar mais à direita ou mais à esquerda, podiam ser mais conservadoras ou progressistas, mas em regra partilhavam uma genuína admiração pela tradição inglesa de liberdade ordeira, evolução gradual, alergia aos extremismos, sentido voluntário do dever.
Esta admiração foi sendo minada pelo crescimento das ideologias antiliberais, antiparlamentares e anti-“capitalistas”, da direita e da esquerda. Hayek viu-as crescer na sua Áustria natal e pressentiu o desastre. Exilado na sua amada Inglaterra, adoptou a cidadania britânica e nunca se cansou de tentar entender as tradições inglesas – mesmo depois de ter ido viver e ensinar para a América.
Virtudes burguesas. Contrariamente à visão corrente do chamado capitalismo – quer entre os seus críticos, quer entre muitos dos seus defensores – Hayek não considerava as economias de mercado moralmente neutras ou fundadas no egoísmo. Acreditava que estavam associadas a uma mundovisão com origens nas raízes da civilização ocidental, à cultura de Atenas e Roma, bem como à tradição judaico-cristã.
Ao defender o retorno aos princípios liberais e democráticos do governo limitado, comércio livre e livre empreendimento, Hayek bateu-se também pela redescoberta das chamadas “virtudes burguesas”, que tinham estado na base da Inglaterra liberal: “A independência, a iniciativa individual, a responsabilidade, o respeito pelos costumes e as tradições, a saudável desconfiança em relação ao poder e à autoridade.”
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Michael Oakeshott e a disposição conservadora
Para Oakeshott, a principal clivagem da história do pensamento político é entre política de fé e política de cepticismo. Os conservadores (de tipo britânico) são os principais representantes da política de cepticismo. E o “racionalismo em política” – geralmente associado aos “progressistas” – é a principal expressão moderna da política de fé.
Michael Oakeshott (1901-1990) é um dos pensadores políticos mais originais do século 20. Sendo conservador, no sentido britânico, apresenta-se como céptico. E acusa os chamados “progressistas” de serem defensores de uma política de fé. No mundo moderno, sustentou Oakeshott, a principal expressão da política de fé é o “racionalismo em política”.
Política de perfeição. O racionalista, argumenta Oakeshott, “always stands”, quer dizer, é sempre a favor de alguma coisa ou contra alguma coisa. As circunstâncias do mundo moderno fazem do racionalista um ser eminentemente contencioso: “Ele é o inimigo da autoridade, do preconceito, do simplesmente tradicional, costumeiro ou habitual.”
Ele acredita que a sua Razão (com R maiúsculo) sabe sempre melhor o que é melhor para si e para os outros. Dizendo-se crítico da fé (sobretudo religiosa), ele é afinal o mais ardente defensor da fé em política.
Para o racionalista, existe sempre uma solução racional para todo e qualquer problema. O racionalista não conhece “o melhor dadas as circunstâncias”: ele só conhece “o melhor”. Para cada problema, a Razão só pode encontrar uma resposta: a resposta Racional. O melhor sistema de ensino, por exemplo, não pode variar de acordo com circunstâncias regionais, muito menos locais, ou com diferentes aspirações de diferentes pessoas, ou pela coexistência concorrencial entre diferentes soluções. O melhor sistema de ensino é só um e será dado pela Razão. O mesmo com o sistema de saúde pública ou com outro problema qualquer.
Para cada problema, haverá uma solução: a solução racional, a melhor. A isto chama Oakeshott política de perfeição.
Política de uniformização. Da política de perfeição decorre naturalmente uma política de uniformização. Se eu estou seguro de que existe uma e uma só solução racional, é perfeitamente compreensível que eu queira generalizá-la uniformemente. Posso admitir compromissos, mas o meu objectivo não pode deixar de ser a generalização uniforme da melhor solução determinada pela Razão. Por isso, eu terei uma atitude de fundo de intolerância para com todos os desvios, ou resistências, à solução racional. Como poderia ser de outra forma, se a solução racional é a melhor solução e se eu não conheço o conceito de “melhor dadas as circunstâncias?
Hostilidade à liberdade. Daqui decorre inevitavelmente uma política de hostilidade para com os modos de vida descentralizados – e, por isso, variados – que emergem de uma atmosfera de liberdade. Estes modos de vida descentralizados não foram obviamente desenhados pela Razão: eles simplesmente existem, estão lá, pela simples razão de que já existiam e de que alguém os achou suficientemente confortáveis para continuar a praticá-los – ou a usufruir deles.
Por isso, segundo Oakeshott, as consequências políticas desta atitude intelectual do racionalista são facilmente observáveis no mundo moderno: a uniformização, a centralização, a intolerância e a hostilidade contra todos os modos de vida descentralizados – e, por isso mesmo, variados – que naturalmente emergem de uma atmosfera de liberdade. A derradeira e mais duradoura consequência política do racionalismo vai ser a hostilidade à liberdade – embora o racionalista vá atacar a liberdade em nome da liberdade.
Disposição conservadora. Contrariamente ao racionalismo moderno, o conservador (de tipo britânico) terá um compromisso fundamental com a liberdade. Mas, diferentemente do liberalismo e do socialismo, esta defesa da liberdade não vai decorrer de uma doutrina ou de um sistema deduzidos a partir de premissas abstractas primeiras – como seria o caso da liberdade, no liberalismo, ou da igualdade, no socialismo.
A disposição conservadora nasce de um attachment e de uma disposição para usufruir aquilo que nos é familiar. E esse attachment não resulta da convicção de que o que nos é familiar é necessariamente “o melhor”. Antes de mais, o nosso modo de vida é o nosso, aquele em que nos sentimos confortáveis, e que gostamos de usufruir, basicamente porque nos é familiar.
Risco de perda. Esta disposição para usufruir gera naturalmente, imperceptivelmente, um sentimento de risco de perda. Se apreciamos o que temos e o que fazemos, numa palavra, se apreciamos o nosso modo de vida, é natural que decorra daí uma certa relutância relativamente a propostas de mudança radical. O risco de perda daquilo que apreciamos – e que conhecemos, que nos é familiar – estará sempre inerente a mudanças cujos resultados não podemos conhecer inteiramente, dado que elas ainda não tiveram lugar. Daí que Oakeshott diga: “Ser conservador, portanto, é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o experimentado ao não experimentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao demasiado abundante, o conveniente ao perfeito, um presente sorridente a uma felicidade utópica.”
Política como ordem superficial. Para este conservador, o primeiro requisito de um regime político será a protecção da sua casa, isto é do seu modo de vida.
Ele não pede ao regime político que lhe diga como deve ser a sua casa, apenas que a proteja. Em contrapartida, também não quer dizer ao vizinho como deve ser a casa dele. Não espera, portanto, que o regime político o faça.
Por outras palavras, o conservador oakeshottiano nunca verá a acção política como sede de uma actividade cujo propósito pudesse ser desenhar os modos de vida das pessoas.
Ele também não pode ver a ordem política como uma ordem que abarca, ou deva abarcar, toda a vida social. Ele tenderá a ver a ordem política como um “ordem superficial”, cuja função primeira deverá ser a garantia de que os modos de vida podem ser vividos ou usufruídos com paz e tranquilidade.
Por outras palavras, o conservador Oakeshottiano pedirá ao governo, antes de mais, que garanta a liberdade de usufruto dos modos de vida variados que existem independentemente do governo ou de quem o ocupa.
Difusão do poder. A liberdade, para o conservador Oakeshottiano, consiste nesta possibilidade de usufruir de modos de vida descentralizados. Não se trata de uma liberdade abstracta, mas de uma liberdade que emergiu no Ocidente ao longo dos séculos, através de múltiplos arranjos particulares: limitação do poder político, liberdade religiosa, propriedade privada, garantias legais do indivíduo, etc.
Mas o mais importante é o que todos e cada um desses arranjos significa e representa: “A ausência na nossa sociedade de uma concentração de poder esmagadora.” Vale a pena voltar a ouvir Oakeshott:
“Esta é a condição mais geral da nossa liberdade, tão geral que todas as outras condições podem ser vistas como estando compreendidas dentro dela. Ela aparece, em primeiro lugar, numa difusão de autoridade entre passado, presente e futuro. A nossa sociedade não é governada exclusivamente por nenhuma destas. […] Além do mais, connosco o poder está disperso entre toda a multitude de interesses e organizações de interesses que compõem a nossa sociedade. Nós não tememos ou tentamos suprimir a diversidade de interesses, mas consideramos a nossa liberdade imperfeita enquanto a dispersão de poder entre eles for incompleta, e ameaçada se o interesse de alguém ou uma combinação de interesses, mesmo que possa ser o interesse de uma maioria, adquirir um poder extraordinário. De modo semelhante, a conduta do governo na nossa sociedade envolve uma partilha de poder, não só entre os órgãos do governo reconhecidos, mas também entre a administração e a oposição. Em resumo, nós consideramo-nos livres porque a ninguém na nossa sociedade é permitido um poder ilimitado – nenhum líder, facção, partido ou classe, nenhuma maioria, nenhum governo, igreja, corporação, associação profissional ou de comércio ou sindicato.”
Estado de direito. Oakeshott sublinha que o método de governo mais apropriado a uma sociedade fundada na difusão do poder é “governo através de estado de direito”, o qual define como “governo através do cumprimento, por métodos prescritos, de normas estipuladas que vinculam tanto os governos como os governados”.
Uma sociedade regida pela rule of law é uma associação civil (civil association), a qual deve ser distinguida de uma associação empresarial (enterprise association). A principal diferença entre elas reside na questão da existência ou não de um propósito singular unificador (single unifying purpose).
A associação empresarial, como o nome indica, assenta num propósito unificador, num empreendimento comum, que gera a voluntária reunião dos seus membros para tentar alcançá-lo ou prossegui-lo. É um tipo de associação totalmente adequada para o sector privado, ou voluntário, ou para o que costumamos designar por sociedade civil. Mas é totalmente desadequado para a ordem política. Esta, como vimos, é uma “ordem superficial”, que não deve procurar impor um “propósito singular unificador” na variedade e complexidade de propósitos e interesses de modos de vida variados.
A função desta “ordem superficial”, numa associação civil, consiste fundamentalmente em proteger esses modos de vida e, para tanto, terá certamente de regulá-los externamente. Isto significa, sobretudo, delimitar as áreas e os procedimentos pacíficos em que cada um deles poderá ser usufruído sem prejudicar a paz civil e o recíproco usufruto dos outros. Significativamente, Friedrich A. Hayek considerou esta distinção de Oakeshott entre associação empresarial e associação civil muito semelhante à sua própria famosa distinção entre organização e ordem espontânea.
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Leo Strauss: o relativismo e a crise da modernidade
Em vez de idolatrar as formas mais modernas ou recentes de pensamento, Strauss convida-nos a redescobrir a sabedoria dos antigos.Strauss comete ainda a heresia suprema de sugerir que essa tradição clássica não é apenas a da filosofia de Atenas, mas também a da religião revelada de Jerusalém.
“Sustentamos que estas verdades são auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que eles são dotados pelo seu criador com certos direitos inalienáveis, que entre estes estão o direito à vida, liberdade e busca de felicidade.”
Com esta famosa passagem da Declaração de Independência norte-americana, inicia Leo Strauss (1898-1973) a sua obra mais famosa, “Natural Right and History”, originalmente publicada em 1950. Afirma em seguida que a nação criada à luz desta declaração, em parte precisamente por ter sido criada à luz desta declaração, tornou-se a mais poderosa ao cimo da terra.
E pergunta: “Esta nação, na sua maturidade, ainda acarinha a fé na qual foi concebida e criada? Ainda acredita que estas ?verdades são auto-evidentes??”
Relativismo. Vale a pena recordar a resposta de Strauss:
“Há cerca de uma geração, um diplomata americano ainda podia dizer que ?a fundação natural e divina dos direitos do homem… é auto-evidente para todos os americanos?. Ao mesmo tempo, um estudioso alemão ainda podia descrever a diferença entre o pensamento alemão e o da Europa Ocidental e Estados Unidos dizendo que o do Ocidente ainda atribuía importância decisiva ao ‘direito natural’, enquanto na Alemanha os mesmos termos ‘direito natural’ e ‘humanidade’ ‘tornaram–se hoje quase incompreensíveis… e perderam inteiramente a sua vida e cor original’.
Porque abandonou a ideia de direito natural e através do seu abandono, continuou ele, o pensamento alemão ‘criou o sentido histórico’ e assim foi conduzido, por fim, a um relativismo total. O que era uma tolerável descrição exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos pareceria hoje ser verdade para o pensamento Ocidental em geral.
Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, de certo modo, aniquilada como entidade política, privaria os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória através da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento.”
Crise de modernidade. Num outro texto célebre, “The Three Waves of Modernity”, Strauss volta a colocar enfaticamente o problema do relativismo:
“A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno não mais sabe o que quer – que ele não mais acredita que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até há algumas gerações atrás, era geralmente tido por adquirido que o homem pode saber o que é certo e errado, o que é o justo ou o bem ou a melhor ordem da sociedade – numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo esta fé perdeu o seu poder.”
De onde vem esta incapacidade para distinguir entre bem e mal, certo e errado, do homem ocidental moderno?
Segundo Strauss, decorre da ruptura com a filosofia política pré-moderna, ou clássica. Esta ruptura gerou o abandono do direito natural clássico, ou o abandono da ideia de que a distinção entre bem e mal, certo e errado é uma distinção objectiva, que pode ser descoberta, mas não inventada ou criada. Por outras palavras, trata-se de uma distinção que não é arbitrária, que não depende da opinião ou da vontade, ou das preferências de cada um. No reconhecimento desta distinção objectiva entre bem e mal existia um crucial acordo entre a filosofia política clássica e a tradição bíblica judaico-cristã.
Maquiavel e Hobbes. A ruptura com essas tradições clássicas teve lugar gradualmente, ao longo do que Strauss designa por “três vagas da modernidade”.
A primeira vaga tem origem em Maquiavel e Hobbes.
Maquiavel começa por introduzir uma inovação ao reclamar para a sua reflexão política um objecto diferente do dos pensadores clássicos. Estes escreviam sobre “como o homem deve viver em vez de como o homem vive de facto. Maquiavel opõe ao idealismo da filosofia política tradicional uma abordagem realista aos assuntos políticos”.
Com este movimento, Maquiavel inicia duas características definidoras das vagas da modernidade: o abaixamento do nosso olhar e a separação entre factos e valores. Tendo baixado o olhar, isto é, tendo colocado o objecto da política a um nível mais baixo – não em como devemos viver, mas em como vivemos realmente – Maquiavel vai transformar o problema político num problema técnico: como alcançar e manter o poder.
Hobbes trabalhará sobre este abaixamento do olhar iniciado por Maquiavel. Introduz o instinto de autopreservação como o alicerce, comum a todos os homens, sobre o qual pode ser estabelecida a soberania do Estado.
Pode então ser dito, explica Strauss, que a primeira vaga da modernidade, com Maquiavel e Hobbes, opera uma aproximação entre o “ser” e o “dever ser” através de um abaixamento do “dever ser”: baixando as exigências acerca de como o homem deve viver ao nível da autopreservação.
Rousseau. Com Rousseau, a segunda vaga da modernidade vai operar uma transformação mais radical: o “dever ser” vai ser reduzido ao “que é”, a possibilidade de apelar a uma lei natural mais alta para desafiar as leis positivas originadas na vontade vai desaparecer. Isto é conseguido, em Rousseau, através do conceito de vontade geral. Diz Strauss:
“Todos os membros da sociedade devem ser igual e totalmente sujeitos às leis para as quais todos devem poder ter contribuído; não deve haver qualquer possibilidade de apelo nas leis, as leis positivas, para uma lei mais alta, a lei natural, porque tal apelo poderia pôr em risco o cumprimento das leis. A origem do direito positivo, e de nada que não o direito positivo, é a vontade geral; uma vontade inerente ou imanente numa sociedade propriamente constituída substitui o transcendente direito natural. […] O conceito de Rousseau de vontade geral que, como tal, não pode errar – que, simplesmente por existir é o que deve ser – mostrou como a barreira entre o é e o deve ser pode ser ultrapassada.”
Historicismo. A terceira vaga da modernidade, representada por Nietzsche, irá radicalizar esta ruptura operada por Rousseau.
Essa radicalização será ainda propiciada pela descoberta do chamado “sentido histórico”, de que Hegel foi o mais célebre defensor. Segundo ele, a história tem um sentido, progride de estágios inferiores para estágios superiores de racionalidade, culminando na racionalidade absoluta. Cada estágio produz verdades relativas à fase de desenvolvimento racional em que se encontra, mas todas essas verdades relativas são passos no sentido da verdade absoluta que é atingida com o culminar do desenvolvimento histórico – curiosamente, a fase em que o próprio Hegel viveu.
Como escreve Strauss, “entre Rousseau e Nietzsche teve lugar a descoberta da história; o século entre Rousseau e Nietzsche é a época do sentido histórico”.
Nietzsche. O sentido histórico tinha tornado todos os valores e ideais relativos à época histórica em que tinham sido criados, mas integrava-os numa hierarquia de progresso racional.
Nietzsche vem denunciar a impossibilidade de sustentar simultaneamente a ideia de relativismo histórico e de progresso. Se os valores são criados – e não, como na filosofia clássica, descobertos – eles próprios constituem o horizonte cultural de cada época. Não existe nenhum padrão exterior aos horizontes historicamente situados que possa constituir uma escala objectiva pela qual o progresso possa ser medido: ele será sempre medido pela escala relativa a cada época histórica.
Chegamos, assim, ao relativismo absoluto de que Strauss falara na sua introdução a Natural Right and History: “Enquanto abandonava a ideia de direito natural e através do seu abandono, o pensamento alemão ‘criou o sentido histórico’ e acabou por ser levado a um relativismo total.
” Sem referências objectivas exteriores à sua vontade, a distinção entre bem e mal, certo e errado ficam ao sabor da vontade. Em Rousseau, tínhamos a vontade geral. Em Nietzsche, temos a vontade de poder: “Seja onde for que encontre vida, encontro vontade de poder.”
Raízes pré-modernas. Leo Strauss extrai daqui uma poderosa e desafiante conclusão política: a democracia liberal partilha com o comunismo as raízes na primeira e segunda vagas da modernidade. O fascismo tem as suas raízes na terceira, que, como vimos, é o culminar das duas anteriores. Desta comunhão de raízes, deriva a debilidade da democracia liberal, isto é, o facto de ela própria ser alvo do relativismo. O que parece poder salvar a democracia liberal é que ela, diferentemente do comunismo e do fascismo, possui raízes exteriores às três vagas da modernidade: a democracia liberal possui raízes na tradição pré- -moderna, em Atenas e Jerusalém.
Em vez de idolatrar as formas mais modernas ou recentes de pensamento, Strauss convida-nos a redescobrir a sabedoria dos antigos; vai mesmo ao ponto de sugerir que a sustentabilidade da democracia liberal moderna depende da nossa capacidade para pensar a democracia liberal em diálogo – em vez de em ruptura – com a tradição clássica; e Strauss comete ainda a heresia suprema de sugerir que essa tradição clássica não é apenas a da filosofia de Atenas, mas também a da religião revelada de Jerusalém. De certa forma, Strauss vai ainda mais longe, pois sugere que, na tradição política de língua inglesa, a democracia liberal não emergiu como produto inteiramente moderno – o que terá sucedido no continente europeu.
Educação liberal. Retomar o diálogo com a tradição clássica do Ocidente parece ser assim a proposta de Strauss para fazer frente ao relativismo que ameaça o homem moderno ocidental. Esse diálogo constitui o objectivo da educação liberal, no seu sentido original de educação humanista, que Strauss define como “educação para a perfeita ?gentlemanship?, para a excelência humana”.
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Isaiah Berlin: Liberdade e Pluralismo
A liberdade, disse Berlin, não é seguramente o único valor estimável. Existem muitos outros. Mas a ideia monista de que é possível reconciliar todos os valores num todo harmonioso, sem conflito entre eles, é uma ideia errada. Visa alcançar o paraíso na terra. Em regra, gera infernos totalitários.
Liberdade é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou felicidade humana, ou uma consciência tranquila”.
Esta é uma das muitas célebres passagens do mais famoso ensaio de Isaiah Berlin (1909-1997), “Two Concepts of Liberty”. O texto serviu de base a uma conferência em Oxford, em 1958. Ainda hoje continua a ser discutido, objecto de estudo, tema de livros e dissertações académicas. Isaiah Berlin e “os dois conceitos de liberdade” são indissociáveis.
Liberdade negativa. De um lado, temos a liberdade negativa, tal como foi entendida pelos liberais clássicos, de Locke a Benjamin Constant, Tocqueville ou John Stuart Mill. É a liberdade entendida como ausência de coerção intencional por terceiros. Significa que um indivíduo será tanto mais livre quanto menor for a interferência de terceiros na sua esfera de decisão. Em termos políticos, o ideal da liberdade negativa supõe a existência de um Estado limitado, que respeita a esfera privada das decisões pessoais, e cujo principal objectivo é garantir que a liberdade de uns não interfere na liberdade de outros.
Mas, tal como indica a citação inicial deste artigo, a liberdade negativa não pode garantir, só por si, que outros valores ou objectivos estimáveis sejam simultaneamente alcançados. Pessoas livres podem cometer muitos disparates no que respeita á sua vida pessoal. Pessoas igualmente livres perante a lei podem ter entre si profundas desigualdades materiais ou económicas. E um Estado pequeno e limitado, que respeite a liberdade negativa dos cidadãos, abstém-se de legislar sobre muitos domínios que algumas pessoas, por vezes a maioria, poderiam preferir que fossem objecto de legislação.
Liberdade positiva. Os três problemas acima referidos constituíram em regra os três principais argumentos dirigidos contra a liberdade negativa pelos defensores de um outro conceito de liberdade: a liberdade positiva. O ponto principal do conceito positivo de liberdade consiste em dizer que o conceito negativo não basta. A liberdade não pode ser apenas ausência de coerção. Tem de ser também capacidade para tornar efectiva a escolha que a liberdade negativa permite fazer.
De que serve a liberdade (negativa) de pensar como quiser ao camponês iletrado que segue voluntariamente os preconceitos difundidos pelo padre local? De que serve a liberdade (negativa) de comprar e vender ao mendigo que vive debaixo da ponte e não tem habitação nem dinheiro para a adquirir? De que serve a liberdade (negativa) de viajar ao trabalhador que não dispõe dos meios para adquirir um bilhete de avião? De que serve, finalmente, a liberdade (negativa) de ter opiniões, se as opiniões da maioria não puderem ser soberanas sobre as limitações impostas ao poder político pelas garantias legais individuais, exigidas pelos defensores da liberdade negativa?
Pluralismo. A estas perguntas, Isaiah Berlin respondeu de forma singela: não se pode ter tudo ao mesmo tempo. A liberdade não é seguramente o único valor estimável. Existem muitos outros. Mas a ideia monista de que é possível reconciliar todos os valores num todo harmonioso, sem conflito entre eles, é uma ideia errada. Visa alcançar o paraíso na terra. Em regra, gera infernos totalitários.
Daí que Berlin tenha defendido uma abordagem pluralista: existe objectivamente uma pluralidade de valores, muitos deles estimáveis, muitos deles respeitáveis. Mas a total harmonia entre eles não é possível. Haverá choques. E terá de haver escolhas. Uma sociedade decente tentará evitar escolhas trágicas. Mas não pode reconciliar todos os valores. O compromisso entre eles implicará sempre alguma perda.
Por isso, Berlin concluiu que “o pluralismo, com a medida de liberdade ?negativa? que ele implica, parece-me ser um ideal mais verdadeiro e mais humano do que os objectivos daqueles que procuram nas grandes, disciplinadas e autoritárias estruturas o ideal do autogoverno ?positivo?, por classes, ou povos, ou pelo conjunto da humanidade. É mais verdadeiro, porque pelo menos reconhece o facto de que os objectivos humanos são muitos, nem todos eles comensuráveis, e em perpétua rivalidade uns com os outros”.
Guerra fria. Esta conferência de Oxford sobre os dois conceitos da liberdade foi justamente interpretada como um manifesto anticomunista. E foi-o certamente. Berlin foi um “cold-warrior”. O seu círculo de amizades situava-se sobretudo ao centro-esquerda, é certo, e por vezes sentiam alguma incomodidade com algumas das posições de Berlin.
Michael Ignatieff recorda várias destas ocasiões na sua excelente biografia de Isaiah Berlin:
“Perante o aborrecimento dos seus amigos da esquerda, Berlin aceitava convites para Downing Street e apreciava a companhia da Sra. Thatcher. Sempre que se encontravam, ela perguntava-lhe em que é que ele estava a trabalhar e, quando ele respondia “nada em especial”, ela levantava o dedo na direcção dele e repreendia-o: “Tem de trabalhar, Isaiah, tem de trabalhar?. “Yes, madam”, respondia ele respeitosamente”.
Uma situação semelhante tivera lugar em 1949, quando Berlin publicou o seu belo ensaio sobre Winston Churchill. Este é, ainda de acordo com Ignatieff, “um ensaio merecidamente famoso entre os que criaram o mito churchilliano”. Ignatieff descreve a situação:
“Hagiografia era o que os seus amigos da esquerda consideravam ser o seu ensaio. Metade do país tinha despedido Churchill do Governo através do voto em 1945 e encarava-o como uma relíquia reaccionária. Em 1949 vislumbrava-se uma nova eleição. Churchill preparava-se para liderar o ataque conservador contra o Governo (trabalhista) de Atlee, e eis que um suposto liberal como Berlin escrevia um elogio ao “maior ser humano do nosso tempo”.
Espírito inglês. Discute-se muito qual era o exacto posicionamento político de Isaiah Berlin. Michael Ignatieff recorda que Berlin nascera em Riga, na Letónia, em 1909, e que a família se exilara em Inglaterra em 1921, após ter assistido com horror à Revolução Soviética. Sugere uma resposta interessante:
“Durante toda a sua vida [Berlin] atribuiu ao espírito inglês quase todo o conteúdo do seu liberalismo: ?que o respeito decente pelos outros e a tolerância em relação à discordância são melhores do que o orgulho e o sentido de missão nacional; que a liberdade pode ser incompatível com, e melhor do que, demasiada eficiência; que o pluralismo e um certo desalinho são, para aqueles que valorizam a liberdade, melhores do que a imposição de sistemas abrangentes, por mais racionais e desinteressados que estes sejam, e melhores do que a vontade da maioria contra a qual não haja apelo’. Tudo isto, insistia Berlin, era ‘profunda e distintivamente inglês’.”
Viver e deixar viver. Quando visitei Isaiah Berlin na sua casa de Headington, em Oxford, em Junho de 1994, passámos toda a manhã a conversar sobre tudo e mais alguma coisa. Inicialmente, eu queria saber as suas opiniões sobre a União Europeia e o alegado nacionalismo das ilhas Britânicas. Ele foi muito prudente acerca da Europa, mas tremendamente enfático em negar que a Inglaterra fosse um país nacionalista.
Ainda me lembro claramente de Berlin a recordar todos e cada um dos dissidentes europeus dos séculos XVIII e XIX, tanto da esquerda como da direita, que fugiram para o exílio em Inglaterra. Foi então que ele disse qualquer coisa semelhante ao que se segue, e que cito das minhas notas:
“Todos eles estavam autorizados a viver e a exprimir as suas opiniões neste país. A Inglaterra foi sempre um país tolerante. Todos eles o reconheciam, mas costumavam queixar-se do facto de os Ingleses os não levarem a sério. Ora, pergunto-lhe eu agora a si: não será esta, de certa maneira, uma condição da tolerância? Quero dizer, se começarmos a levar tudo e todos terrivelmente a sério, iremos continuar a ser capazes de os tolerar da mesma forma que os toleramos quando adoptamos a atitude de ‘viver e deixar viver’?”
Os quadrângulos de Oxford. Parece-me que Berlin estava aqui a confiar abertamente num consenso britânico que não era perturbado por sistemas ideológicos totais. Por causa desse consenso – nas maneiras, nas atitudes, nas regras não escritas de comportamento-, a Inglaterra foi capaz de praticar a tolerância, de viver e deixar viver.
Diz-se hoje que esse consenso não é suficientemente fundamentado, que carece de um sistema filosófico coerente. Não sei se Isaiah Berlin gostaria desse ambição pelos sistemas.
“O último inglês”, como lhe chamou Ian Buruma, amava Oxford e os seus quadrângulos. Quase todos os colégios de Oxford têm pelo menos um quadrângulo, geralmente relvado, e frequentemente mais do que um. No entanto, o quadrângulo mais antigo, o chamado Mob Quad do Merton College (a origem do nome é desconhecida) “não foi desenhado intencionalmente como um quadrângulo, mas emergiu por acidente”.
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Dois conceitos de democracia
A questão do governo limitado distingue as revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. As revoluções inglesa e americana convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria.
Depois de dez ensaios que passaram em revista vários autores cruciais da tradição política de língua inglesa, chegou a altura de iniciar a viagem pelos conceitos que lhes são comuns. Recordamos que o objectivo é encontrar algumas das características definidoras dessa tradição – características que possam ajudar a compreender o “mistério inglês e a corrente de ouro” que foi apresentado no primeiro ensaio (9 de Maio).
GOVERNO LIMITADO Começarei pela questão aparentemente modesta do governo limitado. Na Europa continental é amplamente difundida a crença de que a principal distinção entre democracia e regimes autoritários reside na aceitação ou rejeição do governo do povo ou da maioria, também designado por “soberania popular”. O que é curioso é que nenhum dos autores tratados ao longo destes ensaios – e que defenderam a democracia liberal contra várias formas de despotismo – subscreveu o princípio da soberania popular. Na verdade, quase todos o criticaram expressamente. Isso deveria precaver-nos contra a tentação simplista de identificar a democracia liberal com o princípio da soberania popular.Karl Popper (ensaio de 13 de Junho) condenou severamente as doutrinas vanguardistas de Platão e Marx, segundo as quais o melhor regime seria definido pelo governo de um grupo de especialistas, os filósofos em Platão, os líderes do proletariado em Marx. Mas teve a explícita preocupação de sublinhar que a alternativa não residia simplesmente no governo do povo.
A sua hoje famosa teoria da democracia parte precisamente da asserção de que a pergunta “quem deve governar?” deve ser posta de lado como pergunta crucial para definir o melhor regime político. Essa pergunta, argumentou Popper, deve ser substituída por esta outra: como afastar os maus governos sem derramamento de sangue, sem violência? Ao procurar responder a esta pergunta, Popper mostrou que o governo da maioria não seria, só por si, suficiente. Também o governo da maioria teria de ser limitado por um conjunto de regras que o impedissem de se transformar numa ditadura.
GOVERNO CONSTITUCIONAL Friedrich Hayek (ensaio de 20 de Junho) dedicou grande parte da sua obra a este problema preciso e teve a preocupação de recordar o longo processo de limitação do governo que conduziu gradualmente à emergência das modernas democracias liberais, sobretudo nos países de língua inglesa. Isaiah Berlin (ensaio de 11 de Julho) sublinhou a importância da distinção entre liberdade e soberania e acusou a confusão entre ambas de estar na origem das piores tiranias. Michael Oakeshott (ensaio de 27 de Junho) observou que a limitação do governo pela lei era um dos principais traços distintivos da civilização ocidental. E Leo Strauss (ensaio de 4 de Julho), recordando que Sócrates fora condenado à morte pela democracia ateniense, sublinhou insistentemente que a democracia liberal devia precaver-se contra o governo da multidão (“the rule of the mob”).
Por outras palavras, todos os nossos autores convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria. E todos concordaram que essa limitação passa sobretudo por um sistema constitucional de separação de poderes, freios e contrapesos, direitos e garantias legais: numa palavra, os governos devem ser limitados pela lei, aquilo que na tradição anglo–americana se designa por Rule of Law e na tradição continental por Rechtsstaat ou estado de direito, ou ainda, em ambas, por governo constitucional.
DUAS TRADIÇÕES A diferença entre governo limitado e governo do povo está patente na história do pensamento político desde as suas origens na Grécia ntiga. Aristóteles, que pode ser visto como um antecessor dos autores aqui tratados, defendia um sistema misto e não uma democracia pura. Mas é na emergência das grandes revoluções da época moderna – a de 1688 em Inglaterra, de 1776 na América e a de 1789 em França – que esta distinção se torna crucial.
A questão do governo limitado distingue claramente a orientação das revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. No plano estritamente teórico, o tema do governo limitado é central em John Locke, David Hume, Edmund Burke e nos “Federalist Papers” que prepararam a Constituição Americana de 1787. Pelo contrário, está absoluta e expressamente ausente do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, o autor que mais influenciou a Revolução Francesa, e em particular os jacobinos, e que mais influenciou a sua herança intelectual até à emergência do marxismo (que, como poderíamos argumentar noutra altura, é em quase tudo devedor de Rousseau).
MADISON E ROUSSEAU Num ensaio anterior (30 de Maio), tratei este assunto através de uma comparação crítica entre James Madison e Rousseau. Apenas a título de exemplo, recordo aqui a comparação entre as seguintes passagens de “O Federalista” e “O Contrato Social”. Comecemos por recordar Madison:“Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre os governos. Ao conceber um governo que será administrado por homens sobre homens, a primeira dificuldade reside aqui: primeiro é preciso capacitar o governo a controlar os governados; e a seguir é preciso obrigá-lo a controlar-se a si próprio. Uma dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência mostrou à humanidade a necessidade de precauções adicionais.”
Recordemos agora as palavras de Rousseau:
“Agora, uma vez que o soberano é formado inteiramente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem, nem poderia ter, qualquer interesse contrário ao deles; e assim o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é impossível a um corpo desejar produzir danos a todos os seus membros, da mesma forma que, como veremos a seguir, ele não pode produzir danos a qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de ser, é sempre aquilo que deve ser.”
GOVERNO QUE PRESTA CONTAS Rousseau introduziu a ideia da vontade geral sem constrangimentos, e esta foi interpretada de duas maneiras distintas pelos seus seguidores. Numa versão democrata radical, a vontade geral foi interpretada como vontade soberana, ilimitada, da maioria. Numa versão vanguardista, a vontade geral foi interpretada como algo semelhante a uma “essência”: não a vontade expressa pelos cidadãos, ainda prisioneiros dos seus interesses particulares, mas uma espécie de “interesse geral” dos cidadãos, que estes seriam incapazes de conhecer, e que deveria ser interpretada pelos seus líderes. Esta segunda interpretação foi claramente a de Karl Marx e seus discípulos.
O que importa aqui sublinhar é que nenhuma das versões atribui ao corpo político a função principal de protecção da liberdade e dos modos de vida existentes. Pelo contrário, quer uma quer outra atribuem à esfera política um poder sem restrições, sem entraves. E esse poder tem um propósito: mudar a sociedade, transformá-la com vista a atingir uma nova sociedade inspirada num modelo particular de perfeição. Com Rousseau, a função de governar passa a ser vista como uma função intrinsecamente transformadora. Nos herdeiros de Rousseau existem vários nomes para essa transformação: modernização, igualdade, neutralidade moral, etc., mas o ponto que nos interessa reter é que governar passa a ser entendido como intervir, mudar, inovar, em vez de basicamente garantir a paz civil e a defesa nacional, administrar a justiça e proteger modos de vida realmente existentes.
DESPOTISMO INOVADOR Como salientei no ensaio sobre Edmund Burke (16 de Maio), ele tinha detectado uma versão (muito mais branda) deste “despotismo inovador” nos governos de corte do rei George III. Burke queria limitar este espírito de inovação ilimitado, que entendia como uma ameaça autoritária aos modos de vida existentes, e as suas instituições intermédias.
“É da natureza do despotismo odiar qualquer forma de poder que não seja o decorrente do seu prazer momentâneo; e aniquilar todas as situações intermédias entre a força sem limites da sua parte e a total debilidade por parte do povo.
Ver-se livre de todas estas instâncias independentes e intermédias e assegurar à corte a utilização ilimitada e sem controlo da sua própria vasta influência, sob a única direcção do seu próprio favor particular, tem sido há alguns anos o grande objectivo político. [?] Trata-se de um esquema de perfeição, a ser realizado numa monarquia muito para além da república visionária de Platão.”
Burke era um defensor empenhado do Parlamento e do governo representativo. Neste sentido, podemos dizer que era um democrata de tipo especial. Ao contrário da maioria dos intérpretes continentais da democracia, sob a influência de Rousseau, Burke não entendeu o governo popular ou representativo como uma fonte de governo ilimitado. Para Burke, o governo representativo é sobretudo um limite à vontade política sem entraves, um representante de modos de vida realmente existentes e uma garantia da sua protecção contra “esquemas de perfeição” concebidos a partir de um centro único de poder. Para Rousseau e seus seguidores, o governo da vontade geral é visto como uma assembleia em permanente acção política transformadora.
DIFUSÃO DO PODER Isto conduz-nos a uma outra característica crucial da tradição política anglo-americana: o conceito de liberdade como difusão do poder. Trataremos este tema no próximo sábado.
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Liberdade como dispersão e equilíbrio de poderes
Do ponto de vista das origens reais e históricas da democracia liberal, a liberdade não assentou na libertação, nem na colectivização, mas na diversificação e na descentralização do poder na sociedade. As condições mais duradouras da liberdade residem na divisão da autoridade e na multiplicação das suas fontes.
Um conceito peculiar de liberdade, que foi extremamente influente na cultura política da Europa continental, ficou particularmente associado a Jean-Jacques Rousseau (ensaio de 30 de Maio). Tal como salientou Isaiah Berlin (ensaio de 11 de Julho), este conceito de liberdade entende-a como soberania colectiva, participação colectiva de todos – enquanto iguais – no processo de tomada de decisões de uma dada comunidade política.
A noção é basicamente a seguinte: se todos forem capazes de participar no processo de tomada de decisões em condições iguais, as leis que emanam do processo colectivo não podem ser despóticas. Como diria Rousseau, se me entrego a todos, não me entrego a ninguém, e por isso sou livre.
JOHN STUART MILL Creio que este foi o núcleo conceptual do novo despotismo – igualitário e democrático, mas seguramente não democrático-liberal – emergente da Revolução Francesa de 1789 e mais tarde consagrado na revolução soviética de 1917. John Stuart Mill destacou-se no século 19 como um dos mais vigorosos críticos deste novo despotismo igualitário. No seu ensaio de 1859 “Sobre a Liberdade”, Mill sustentou que o risco principal das sociedades modernas, numa época democrática, é a tirania da maioria sobre as minorias e, acima de tudo, sobre o indivíduo.
Isto conduziu John Stuart Mill ao seu célebre “princípio muito simples”: que “a única finalidade pela qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é prevenir o dano contra outros.”
Podemos descrever esta concepção milliana da liberdade – que Isaiah Berlin denominou “liberdade negativa” – como “libertação do poder”. Esta “libertação do poder” é manifestamente muito distinta da concepção de liberdade de Rousseau enquanto “participação no poder”.
ALEXIS DE TOCQUEVILLE Outro autor do século 19 que ficou associado à crítica do novo despotismo igualitário foi Alexis de Tocqueville. Amigo e correspondente de John Stuart Mill, é frequentemente citado em conjunto com ele como defensor da liberdade negativa, entendida como ausência de coerção intencional por terceiros.
A associação entre Tocqueville e Mill é sem dúvida legítima, mas a concepção de liberdade em Tocqueville é bastante mais complexa que em Stuart Mill – ou, pelo menos, que no Stuart Mill do ensaio “Sobre a Liberdade”, uma vez que há outros textos deste pensador (como “On Coleridge” e “On Bentham”, por exemplo), que nos dão outra dimensão da sua obra.
Dois exemplos podem bastar para sugerir a diferença entre Tocqueville e o Stuart Mill de “Sobre a Liberdade”. O primeiro é que Tocqueville entendia a “arte da associação” espontânea como baluarte crucial da liberdade. O outro é que Tocqueville entendia a religião como o aliado principal da liberdade. Estes dois tópicos muito simples e bem conhecidos bastam para sugerir que Tocqueville considerava a liberdade algo que não pode ser inteira e exclusivamente descrito como uma libertação do indivíduo relativamente ao poder ou à colectividade.
INSTITUIÇÕES INTERMÉDIAS Gostaria de sustentar que Tocqueville estava interessado nas condições da liberdade e as percebia fundamentalmente na dispersão de poder, na dispersão pluralista de várias instituições intermédias que protegeriam os indivíduos e os seus modos de vida do abuso por parte do poder centralizado. Robert Nisbet chamou a atenção para estas condições da liberdade:
“As filosofias modernas da liberdade tenderam a realçar ou a libertação individual de qualquer género de poder – em geral, através de um recurso aos direitos naturais -, ou a participação individual numa única estrutura de autoridade, como a Vontade Geral, que substitui todas as outras estruturas.
No entanto, do ponto de vista das origens reais e históricas da democracia liberal, a liberdade não assentou na libertação, nem na colectivização, mas na diversificação e na descentralização do poder na sociedade. As condições mais duradouras da liberdade residem na divisão da autoridade e na multiplicação das suas fontes.”
IGUALDADE E CENTRALIZAÇÃO Tocqueville constatou a tendência natural dos homens da era democrática para a centralização. E compreendeu que esta tendência centralizadora estava apoiada no que se pode designar como a falácia de Rousseau: se a única estrutura de autoridade central estiver sustentada na denominada vontade popular, ou na vontade geral, então o indivíduo acreditará que tudo aquilo que conferir ao poder central estará apenas a conferir a si próprio.
Foi por isso que Tocqueville afirmou que a ciência do despotismo se tornara muito simples na época moderna: está agora fundada num único princípio – a igualdade. Tal como afirmou Rousseau, e como o homem moderno se inclina a acreditar, o poder dos iguais não pode ser despótico.
PEQUENOS PELOTÕES Mas Tocqueville e Stuart Mill viram claramente que o poder dos iguais pode muito bem ser – na verdade, tende mesmo a ser – despótico. Ambos quiseram proteger a liberdade, embora por vias distintas.
Mill põe a tónica no indivíduo; Tocqueville salienta aquilo que gostaríamos de denominar – utilizando a expressão de Edmund Burke – os “pequenos pelotões”. Trata-se de associações espontâneas – como as famílias, as vizinhanças, as igrejas e outras associações voluntárias – que geram instituições intermédias entre, por um lado, o indivíduo isolado e frágil, e por outro o possante Estado central.
Estas instituições intermédias, ou pequenos pelotões, não são criadas centralmente por desígnio, para utilizar uma expressão de Friedrich A. Hayek (ensaio de 20 de Junho); simplesmente emergem a partir da interacção espontânea dos indivíduos, das suas famílias, de outras instituições descentralizadas – em poucas palavras, a partir da interacção dos indivíduos que estão enraizados nos seus modos de vida particulares.
TRÊS INDIVIDUALISMOS Em certo sentido, podemos dizer que Rousseau, Stuart Mill e Tocqueville, todos eles, são individualistas. Porém, na verdade, os seus individualismos são muito distintos.
Rousseau não aceitava o enraizamento do indivíduo em qualquer particularismo: os seus interesses privados – da sua família, do seu negócio ou da sua igreja – impedi-lo-iam de se tornar um cidadão plenamente comprometido com a vontade geral. Isto esteve na origem da tragédia do jacobinismo e mais tarde do comunismo: a hostilidade contra os compromissos e enraizamentos particulares – para utilizar a expressão de Michael Oakeshott – ou a hostilidade contra o impulso de melhorar a própria condição – para usar a expressão de Adam Smith.
Isto significa que, para Rousseau, o indivíduo deve ser desenraizado de modo a tornar-se parte de um todo único – o soberano colectivo, sem limites ou freios e contrapesos. O individualismo desenraizado, que Rousseau usa como ponto de partida, gera um colectivismo intransigente como ponto de chegada.
É inquestionavelmente verdade que John Stuart Mill percebeu o perigo deste soberano colectivo sem limites. Mas ele queria controlá-lo fundamentalmente com o indivíduo isolado – o indivíduo que se atreve a embarcar no que denominava “experiências na vida”.
O grande mérito de Tocqueville foi ter percebido que a liberdade seria demasiado débil se fosse deixada apenas ao cuidado de indivíduos isolados. Tocqueville queria proteger a liberdade dos indivíduos, mas não só daqueles que desejavam realizar “experiências na vida”. Queria proteger a liberdade dos indivíduos concretos que estavam enraizados nos seus próprios modos de vida, nas suas famílias e noutras instituições espontâneas. E viu nestas instituições intermédias – tão influentes na América – os baluartes supremos da liberdade.
O MISTÉRIO INGLÊS No século 20, Michael Oakeshott (ensaio de 27 de Junho) apresentou um ponto de vista surpreendentemente semelhante ao de Tocqueville acerca da tradição britânica da liberdade, aquilo que temos designado nestes ensaios por “mistério inglês”:
“Esta é a condição mais geral da nossa liberdade, de tal forma que todas as outras condições podem ser entendidas como estando contidas nela. Surge de início numa difusão da autoridade entre o passado, o presente e o futuro. A nossa sociedade não é dirigida exclusivamente por nenhum destes. [?] Além disso, connosco o poder está disperso por toda a variedade de interesses e de interesses organizados compreendidos na nossa sociedade. Não tememos, nem procuramos suprimir a diversidade de interesses, mas consideramos imperfeita a nossa liberdade sempre que a dispersão de poder entre eles for incompleta, e consideramos que está ameaçada se um interesse ou uma combinação de interesses, mesmo que seja o interesse de uma maioria, obtiver um poder extraordinário. De modo semelhante, o desempenho do governo na nossa sociedade implica uma partilha do poder, não só entre os órgãos oficiais do governo, mas também entre o executivo e a oposição. Em resumo, consideramo-nos livres porque na nossa sociedade não se faculta a ninguém um poder ilimitado – a nenhum dirigente, facção, partido ou ?classe?, a nenhuma maioria, a nenhum governo, igreja, corporação, negócio, associação profissional ou sindicato.”
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A Democracia face ao equívoco relativista
Discutimos nos dois últimos ensaios os contornos políticos da democracia. Vimos que assentam no governo representativo limitado pela lei e que se distinguem de dois tipos de regimes rivais. Por um lado, as democracias distinguem-se de todo e qualquer regime vanguardista (de esquerda ou de direita) em que os governantes não prestam contas aos cidadãos. Por outro lado, distinguem-se dos regimes (mais uma vez, de esquerda ou de direita) que se reclamem da chamada soberania popular.Cabe-nos agora discutir se existe ou não um fundamento moral para as democracias liberais, tais como as descrevemos aqui com base nas obras dos autores que examinámos.
RELATIVISMO DEMOCRÁTICO? Muitos comentadores têm tendência a identificar a humildade e o cepticismo intelectuais dos autores tratados ao longo destes ensaios com uma espécie de relativismo moral. Segundo esse ponto de vista, a democracia liberal distinguir-se-ia dos totalitarismos do século 20 precisamente por não abraçar qualquer moral particular enquanto “verdadeira”. Os totalitarismos, pelo contrário, reclamariam para a sua “moral” o estatuto de única verdadeira – e por isso perseguiam os que não concordavam com ela.
Existe, à primeira vista, alguma plausibilidade neste argumento. No entanto, ele dificilmente resiste a uma reflexão mais prolongada.
O que caracterizou os totalitarismos do século 20, quer no plano intelectual quer no plano da acção política, foi precisamente a revolta contra todos os limites morais absolutos e interpessoais ao exercício da vontade revolucionária. Por outras palavras, o colapso da liberdade deveu-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais.
E os autores que estudámos tiveram clara consciência disso mesmo, embora muitos comentadores tendam a não se aperceber desse aspecto crucial.
ABSOLUTO MORAL Isaiah Berlin, por exemplo, é muitas vezes apresentado como o símbolo da recusa de quaisquer princípios morais absolutos e da defesa de um total pluralismo de valores, que seriam absolutamente incomensuráveis entre si. No entanto, no seu mais célebre ensaio, “Dois conceitos de liberdade”, Berlin faz expressa e repetida referência à necessidade de um absoluto moral como trincheira contra a tirania:
“Se eu quiser preservar a minha liberdade [?] Tenho de criar uma sociedade em que existam certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor. Podem ser atribuídos diferentes nomes ou naturezas às regras que determinam essas fronteiras: direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural ou as exigências da utilidade ou dos “interesses permanentes do homem”; posso acreditar que são válidas a priori ou reivindicá-las como os meus propósitos essenciais, ou da minha sociedade, ou cultura. (?) A crença genuína na inviolabilidade de uma área mínima de liberdade individual implica uma posição absoluta.”
BARREIRAS ABSOLUTAS E Isaiah Berlin acrescenta:
“Para Constant, Mill e Tocqueville e para a tradição moral em que se inserem, nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos, e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente; e, segundo, que existem fronteiras, não artificialmente traçadas, dentro das quais os homens devem ser invioláveis.”
Por fim escreveu:
“E são regras como estas que são violadas sempre que uma pessoa é declarada culpada sem julgamento, ou punida com uma lei retroactiva; sempre que os filhos são forçados a denunciar os pais, os amigos a traírem os amigos, os soldados a usarem métodos bárbaros; sempre que os homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas porque provocam a irritação de uma maioria ou de um tirano. Tais actos, ainda que legalizados pelo soberano, causam horror mesmo nos dias de hoje, e isso resulta do reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas – à imposição da vontade de um homem a um outro.”
VONTADE SEM ENTRAVE Isaiah Berlin captou de forma extraordinariamente certeira um dos segredos do totalitarismo do século XX: a sua revolta contra o “reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas à imposição da vontade de um homem a um outro”. A isto temos chamado ditadura da vontade sem entrave. Observámos que essa ditadura foi possível, em primeiro lugar, porque a ideia de governo limitado fora abandonada. Verificamos agora que Isaiah Berlin afirma que a possibilidade de um governo ilimitado ou sem entraves resulta do abandono do reconhecimento da validade moral de algumas barreiras absolutas.
Não deixa de ser curioso notar que Hayek afirmou precisamente o mesmo:
“Um sistema desse tipo (de liberdade) terá possibilidades de ser alcançado e mantido apenas se toda a autoridade, incluindo a da maioria, for limitada no exercício do poder coercivo por princípios gerais com os quais a comunidade se tenha identificado. A liberdade individual, onde quer que tenha existido, tem sido sempre produto de um respeito dominante por esses princípios, os quais, no entanto, nunca foram completamente articulados em documentos constitucionais.”
POSITIVISMO E ARBITRARIEDADE Mais adiante, Hayek considera que foi o alastramento do positivismo que conduziu ao abandono do respeito por esses princípios:
“É apenas demasiado verdade, como reconheceram não apenas opositores do positivismo como Emil Brunner, mas no fim até positivistas de toda a vida como Gustav Radbruch, que foi a prevalência do positivismo que tornou indefesos os guardiões da lei contra os novos avanços do governo arbitrário”.
Finalmente, Hayek reforça a sua crítica ao positivismo citando Emil Brunner:
“O Estado totalitário é simplesmente e somente o positivismo legal em prática política”.
POSITIVISMO E MARXISMO É importante notar que também Karl Popper acusou o positivismo de estar associado ao crescimento do totalitarismo e ao abatimento das fronteiras morais que limitavam o exercício do poder arbitrário. No seu famoso “esforço de guerra”, “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”, Popper caracterizou o positivismo ético como a atitude que “partilha com o naturalismo ético a crença em que devemos tentar reduzir normas a factos. Mas os factos são desta vez factos sociológicos, designadamente, as normas realmente existentes. O positivismo mantém que não há outras normas que não sejam as leis que foram feitas e que por isso têm existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação. As leis realmente existentes são consideradas como os únicos possíveis padrões de bem: o que é, é bom. (a força é o direito).”
Karl Popper considerou que esta forma de positivismo ético (denunciada por ele em Hegel) foi levada ao extremo pelo historicismo marxista:
“Em capítulos anteriores, fiz referência ao positivismo moral (especialmente o de Hegel), a teoria de que não há qualquer outro padrão moral a não ser aquele que existe; aquilo que é, é razoável e bom; portanto, a força é o direito. O aspecto prático desta teoria é este: uma crítica moral de um estado de coisas actual torna-se impossível, uma vez que é esse próprio estado de coisas que determina o padrão moral das coisas. Ora a teoria moral historicista que estamos a considerar (de Marx) nada mais é do que uma outra forma de positivismo moral.”
PENSAMENTO ALEMÃO Isto significa que, para Popper, o historicismo é apenas uma forma do positivismo moral que ele e Hayek consideraram responsável pelo abandono dos princípios morais. E foi este abandono dos princípios morais que ambos, juntamente com Isaiah Berlin, apontaram como geradores do poder arbitrário sem limites. Ora foi precisamente este fenómeno que também Leo Strauss apontou, em 1950, como gerador do totalitarismo moderno:
“Ao abandonar a ideia de direito natural, o pensamento alemão criou o “sentido histórico” e assim foi conduzido no final ao relativismo total. O que era uma descrição toleravelmente exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos parece agora aplicar-se ao pensamento ocidental no seu conjunto. Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privou os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória por meio da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento.”
CRISE DA MODERNIDADE Para Strauss, o relativismo estivera na base do fenómeno totalitário que fora derrubado pelas democracias ocidentais. Mas, no plano puramente intelectual, o relativismo sobrevivera à derrota do totalitarismo e dominava a atmosfera intelectual e moral das democracias. O triunfo do relativismo era, para Strauss, a origem daquilo que designou por crise da cultura ocidental moderna:
“A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno já não sabe aquilo que quer – já não acredita que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até algumas gerações atrás, era geralmente aceite que o homem pode saber o que é certo e errado, qual é a ordem de sociedade justa, ou boa ou melhor – numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo, essa fé perdeu o seu poder.”
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O racionalismo dogmático na origem do dogmatismo relativista
Como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?
No sábado passado discutimos os fundamentos morais da democracia liberal. Observámos que os totalitarismos do século 20, da esquerda e da direita, se caracterizaram pela revolta contra todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionária.Por outras palavras, o colapso da liberdade ficou a dever-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. Por outras palavras ainda, o colapso da liberdade ficou a dever-se ao triunfo intelectual e moral do relativismo.
PERGUNTA CRUCIAL A pergunta que decorre daqui é incontornável: como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?
Os autores que discutimos ao longo destes ensaios sugerem uma resposta inesperada a esta pergunta crucial: eles sugerem que foi o racionalismo dogmático que gerou o relativismo. Mas não contrapõem ao racionalismo dogmático qualquer forma de irracionalismo. Eles sustentam um outro tipo de racionalismo, a que podemos chamar crítico, ou falibilista. Esta é uma longa história de que aqui podemos dar apenas um breve apanhado.
RACIONALISMO DOGMÁTICO Karl Popper atribuiu importância decisiva à distinção entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático, “compreensivo” (no sentido de abrangente), ou total. Apresentando-se como um racionalista de tipo especial, ou seja, como um racionalista crítico, Popper condenou a presunção do racionalismo dogmático:
“Podemos descrever o racionalismo acrítico ou dogmático como a atitude da pessoa que diz: ?Não estou disposto a aceitar nada que não possa ser defendido com base em argumentos ou na experiência?. Podemos expressar esta ideia também sob a forma do princípio de que qualquer pressuposto que não seja confirmado por argumentos ou pela experiência deve ser rejeitado. Ora, é fácil ver que este princípio do racionalismo acrítico carece de coerência, pois, como não pode, por seu turno, ser confirmado por argumentos ou pela experiência, implica que ele próprio deve ser rejeitado. (Assemelha-se ao paradoxo do mentiroso, ou seja, a uma frase que afirma a sua própria falsidade.) O racionalismo acrítico é, portanto, insustentável em termos lógicos; e uma vez que é possível provar isto com argumentos puramente lógicos, é possível demonstrar a invalidade do racionalismo acrítico recorrendo à sua principal arma, os argumentos.”
PRESSUPOSTO COLOSSAL E Popper acrescentou: “Podemos generalizar esta crítica. Como todos os argumentos devem proceder de pressupostos, é evidentemente impossível exigir que todos os pressupostos se baseiem em argumentos. A exigência de muitos filósofos de que não partamos de qualquer pressuposto e nunca pressuponhamos nada acerca da ?razão suficiente?, e mesmo a exigência menos insistente de que partamos de um conjunto muito pequeno de pressupostos (?categorias?), são ambas inconsistentes nesta formulação. Porque essas mesmas exigências assentam no pressuposto verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou apenas com alguns pressupostos, e mesmo assim obter resultados válidos.”
BUSCA DA CERTEZA Também Michael Oakeshott viu no racionalismo dogmático a origem do relativismo. Chamou-lhe a política de fé, por oposição à política de cepticismo, sendo a primeira denominada também política racionalista, ou política da perfeição. Atribuiu a Descartes e Bacon a origem do racionalismo dogmático: “O objectivo de Descartes, tal como o de Bacon, é a certeza. O conhecimento seguro só pode surgir numa mente esvaziada: a técnica da investigação começa com uma depuração intelectual. O primeiro princípio de Descartes é ?de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse évidemment être telle, c?est à dire d?eviter soigneusement la précipitation et la prévention?, de bâtir dans un fonds qui est tout à moi?, e diz que o investigador é ?comme un homme qui marche seul et dans les ténèbres? » (em francês, no original inglês de Oakeshott).
FALSA ABERTURA Oakeshott mostra como por detrás da aparente “abertura de espírito” do racionalista (o racionalista acrítico e total, como teria dito Karl Popper) se encontra a sua busca obsessiva da certeza e a sua muito dogmática (e muito pouco “aberta”) incapacidade de viver com a incerteza, ou com o conhecimento falível e experimental inerente às tradições descentralizadas, ao hábito ou ao simples common sense: “O cerne da questão é a preocupação do Racionalista com a certeza. Para ele, técnica e certeza são indissociáveis porque o conhecimento exacto é, para ele, conhecimento que não precisa de ir além de si mesmo para se saber certo? Por exemplo, a superioridade de uma ideologia em relação a uma tradição de pensamento deve-se à sua aparente autonomia. É mais fácil ensiná-la a uma mente vazia; e se for ensinada a alguém que já acredita em qualquer coisa, a primeira coisa que o professor deverá fazer é administrar um purgante, certificar-se de que todos os preconceitos e ideias preconcebidas foram eliminados, construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.”
COMEÇAR DO NADA “Construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta”, diz Oakeshott acerca da atitude do racionalista. Ora é exactamente desta forma que Karl Popper descreveu a atitude de um racionalista dogmático: “Não estou interessado na tradição. Quero julgar tudo pelos seus próprios méritos; quero conhecer os seus méritos e deméritos, e quero fazê-lo o mais independentemente possível de qualquer tradição. Quero julgar com o meu próprio entendimento e não com o entendimento de outros que viveram há muito tempo.”
Karl Popper argumentou que é impossível substituir todo o conhecimento herdado por novo conhecimento alegadamente fundado “dans un fond qui est tout à moi”, para usar a expressão de Descartes. Isso significaria substituir em uma ou duas gerações tudo aquilo que amadureceu gradualmente ao longo das gerações. Recordemos mais uma vez o que disse Popper a este respeito:
“É uma questão muito simples e decisiva, que no entanto poucas vezes é suficientemente entendida pelos racionalistas – que não podemos começar do nada; que precisamos de usar os conhecimentos científicos daqueles que vieram antes de nós. Se começássemos do nada, quando morrêssemos nem teríamos chegado aonde chegaram Adão e Eva (ou, se preferirem tão longe como o homem de Neanderthal). Na ciência queremos progredir, e isto significa que temos de nos manter nos ombros dos nossos predecessores.”
CHEGAR AO NADA Tal como na ciência, também no âmbito dos padrões morais e de comportamento não é possível começar do nada. A busca da certeza sem pressupostos – a ambição de começar do nada — também aqui conduzirá a que cheguemos ao nada. Isto significa que nenhum padrão – nem mesmo as sagradas palavras da Declaração de Independência americana, “os homens nascem iguais”, muito menos o código inglês da gentlemanship – nada no fim será poupado à busca da certeza sem pressupostos por parte do racionalismo dogmático.
Então, enquanto a purga intelectual prossegue, à medida que todos os preconceitos e ideias preconcebidas são eliminados, o racionalismo dogmático aproximar-se-á triunfantemente do seu grande objectivo: estabelecer as suas fundações sobre a rocha cartesiana da ausência de pressupostos, ou, como escreveu Oakeshott, sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.
RELATIVISMO DOGMÁTICO Mas a ignorância absoluta é o reino do relativismo absoluto. É o reino do nada, do “sem significado”, ou do “por que não?” e do “seja o que for”.
Por outras palavras, a busca da certeza – que conduziu o racionalista dogmático à destruição de todos os pressupostos que ele não conseguia demonstrar – condu-lo, por fim, a uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não mencionar o dever ou a honra e, hoje em dia, até acerca do conhecimento científico.
No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra “narrativa”. Se tudo é resultado da vontade arbitrária, por que é que a democracia liberal deve ser entendida como melhor do que as suas inimigas?
VONTADE SEM ENTRAVES Eis como chegámos à destruição de todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionárias sem entraves. Discutiremos no próximo sábado se e como é possível voltar a aceitar limites morais.
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Em busca de uma alternativa ao relativismo
Em 1961, Karl Popper sustentou que “a principal doença do nosso tempo é um relativismo intelectual e moral, o segundo sendo, pelo menos em parte, baseado no primeiro”
Discutimos no sábado passado os argumentos que sugerem a associação do relativismo com o racionalismo dogmático – sendo o primeiro uma espécie de consequência não intencional do último. Enfrentamos agora uma questão inevitável: será que o relativismo pode ser intelectualmente derrotado? Até ao momento, sustentei que os nossos autores criticaram o relativismo. Mas será que forneceram uma alternativa viável ao relativismo?
PADRÕES E CRITÉRIOS Karl Popper abordou fundamentalmente este problema na adenda de 1961 (“Factos, Padrões e Verdade: Uma Crítica Suplementar ao Relativismo”) ao seu magnum opus de 1945, “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”. Neste vigoroso e denso ensaio, Popper começa por afirmar que “a principal doença do nosso tempo é o relativismo intelectual e moral, o segundo sendo, pelo menos em parte, baseado no primeiro”. Este relativismo caracteriza-se pela negação da existência de verdade objectiva ou pela afirmação da arbitrariedade da escolha entre duas asserções ou teorias.
Para refutar este ponto de vista, Popper começa por estabelecer uma distinção entre padrões e critérios. Um enunciado é verdadeiro, diz Popper, se e apenas se corresponde ao factos. Esse é o padrão de verdade de um enunciado, e ele é totalmente objectivo: um enunciado é ou não verdadeiro, isto é, corresponde ou não aos factos, independentemente de sabermos se é ou não verdadeiro. Só este entendimento de verdade permite dar sentido ao conceito de erro. Cometemos um erro quando consideramos verdadeiro um enunciado que é falso, ou vice-versa. Em bom rigor, cometemos em regra erros sem termos consciência de que os estamos a cometer.
Uma das razões principais pelas quais cometemos erros é não existirem critérios inteiramente seguros para descobrirmos em todas as situações se um enunciado corresponde ou não aos factos. Existe por isso uma diferença entre a falibilidade dos critérios e a objectividade do padrão de verdade. É devido a esta diferença que é tão importante a liberdade de crítica: é ela que permite detectar erros na utilização de critérios e, dessa forma, nos ajuda a aproximar da verdade objectiva. Esta atitude, que combina a defesa da existência de um padrão objectivo e absoluto de verdade com o reconhecimento da falibilidade dos critérios para identificar a verdade, foi denominada por Popper “absolutismo falibilista”.
FACTOS E PADRÕES O absolutismo falibilista parece ser uma poderosa alternativa ao relativismo epistemológico, mas não é seguro que constitua uma alternativa ao relativismo moral. Popper reconhece que o conceito de “bem” ou de “justiça” é logicamente mais complexo que o conceito de “verdade” enquanto correspondência com os factos. Contudo, sustenta o autor, também podemos aprender com os nossos erros no domínio dos padrões morais e também podemos procurar padrões moralmente mais exigentes. Esta será mesmo uma das características fundamentais do liberalismo – que “se baseia no dualismo de factos e padrões no sentido em que acredita na procura de padrões sempre melhores, especialmente no domínio da política e da legislação”.
A questão que permanece, no entanto, é a seguinte: enquanto o padrão de verdade é a correspondência entre um enunciado e os factos, qual é o padrão de bem? A resposta de Popper centra- -se na ideia de que podemos aprender com os nossos erros também no domínio moral:
“Como aprendemos acerca dos nossos padrões? Como é que, neste domínio, aprendemos com os nossos erros? Primeiro, aprendemos a imitar os outros (a propósito, fazemo-lo por tentativa e erro) e assim aprendemos a considerar os padrões de comportamento como se consistissem em regras fixas, ?regras adquiridas?. Mais tarde verificamos (também por tentativa e erro) que cometemos erros – por exemplo, que podemos magoar as pessoas. Deste modo, aprendemos a regra de ouro; mas logo constatamos que podemos ajuizar erradamente da atitude de um indivíduo, da sua base de conhecimentos, dos seus objectivos, dos seus padrões; e podemos aprender com os erros cometidos a acautelar-nos, mesmo para além da regra de ouro.”
PATAMAR DO SELVAGEM Friedrich A. Hayek apresenta um argumento acerca da natureza, origens e justificação das regras morais que afirma ser inspirado pela epistemologia de Karl Popper. Podem ser encontrados elementos deste argumento em todas as suas obras, mas são principalmente articulados no seu último livro, “The Fatal Conceit: The Errors of Socialism”. O autor relembra aqui que Popper critica a ambição de eli- minar todas as tradições que não podem ser racionalmente justificadas e reafirma que esta ambição tem sido “aquilo que todas as versões de cientismo advogaram – desde o racionalismo cartesiano ao positivismo moderno”. Hayek utiliza uma metáfora muito popperiana, afirmando que “se entretanto abandonássemos todas as conjecturas actuais cuja sua veracidade não pudéssemos provar, depressa retornaríamos ao patamar do selvagem que confia apenas nos seus instintos”. Ainda assim, isto deixa-o com a questão de como distinguir entre “conjecturas boas e más”, ou seja, bons e maus princípios morais.
Hayek mantém que a origem das regras morais reside num processo evolutivo em que as práticas daqueles grupos que são preponderantes são copiadas e adoptadas por outros. Hayek explica que “essas regras novas não se difundirão porque os homens as entendem como mais eficazes, ou porque cuidam que conduzirão à expansão, mas apenas porque permitiram àqueles grupos que as praticam uma reprodução mais bem sucedida e a inclusão de forasteiros”. Contudo, tem o cuidado de sublinhar que estas regras não são comummente agradáveis, já que tendem a impor restrições ao comportamento das pessoas. A questão que emerge daqui é incontornável: se estas regras não são inteiramente compreendidas e se não são agradáveis, por que razão, e como é que estes grupos bem-sucedidos as mantêm?
PLURALISMO Por sua vez, Isaiah Berlin deixou-nos uma dificuldade similar, senão maior. Por um lado, Berlin sublinhou a importância de “uma posição absoluta” tendo em vista a protecção da “área mínima de liberdade individual”. Esta posição absoluta, de acordo com Berlin, pode surgir de fontes distintas, sejam elas “direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural” sejam as exigências da utilidade ou dos “interesses permanentes do homem”. O ponto crucial é terem de ser amplamente aceites para fazerem parte do costume ou da opinião, de modo a suportarem “certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor”.
Por outro lado, Berlin salientou que “os fins dos homens são múltiplos, e em princípio nem todos são compatíveis entre si”. Isto implica que “a possibilidade do conflito – e da tragédia – não pode ser totalmente eliminada da vida humana, pessoal ou social”.
A partir desta concepção pluralista da variedade e da incomensurabilidade dos fins humanos, Isaiah Berlin derivou de boa fé uma certa medida de “liberdade negativa”, ou de “liberdade tal como Acton a concebeu”. Mas hoje em dia é amplamente apreendido que, se “o pluralismo for absoluto”, quer isto dizer, se o pluralismo não permitir qualquer hierarquia entre bens ou reivindicações rivais, então a liberdade torna- -se apenas mais um fim ou reivindicação – que, de acordo com um “pluralismo compreensivo”, não se pode dizer melhor do que a abolição da liberdade.
Por outras palavras, se derivarmos a liberdade do pluralismo, e se o pluralismo for absoluto, então aquelas “fronteiras de liberdade que ninguém é autorizado a transpor” desaparecerão: tornar-se-ão apenas mais uma preferência arbitrária, uma daquelas “finalidades humanas (que) são múltiplas, nem todos elas comensuráveis, e em conflito perpétuo entre si”.
DIREITO NATURAL Esta linha ténue entre o pluralismo de Isaiah Berlin e o mero relativismo é hoje em dia amplamente reconhecida. Foi assinalada de forma crítica, embora afável, por Leo Strauss no seu ensaio “O Relativismo”. Isto poderia levar-nos a pensar que Leo Strauss foi, entre os nossos autores contemporâneos, aquele que forneceu de forma mais adequada uma alternativa ao relativismo. Sustentou que a democracia liberal só poderia resistir ao relativismo se retornasse às suas raízes pré–modernas, às raízes do direito natural clássico e à filosofia política clássica.
Mas poderemos realmente regressar ao direito natural clássico? E será que ele fornece realmente uma resposta ao relativismo moderno? As respostas de Leo Strauss a estas questões foram extremamente complexas e, em certa medida, fugidias. Desenvolveram-se várias escolas de interpretação, contendendo, por vezes de forma extrema, umas com as outras. Podemos perguntar a nós mesmos se ele realmente acreditava que a filosofia era capaz de fornecer a resposta ao relativismo. Alguns intérpretes afirmaram que a filosofia não o conseguiria e que os filósofos, sendo conscientes disto, não deveriam tentar dirigir filosoficamente a cidade. Pelo contrário, devem simplesmente estar conscientes de que a democracia liberal é o regime mais amistoso com a filosofia no mundo moderno, dado que é aquele que permite aos filósofos prosseguirem o seu inquérito em liberdade – desde que estes tenham o cuidado de não divulgar as suas conclusões ao grande público.
CONVERSAÇÃO No próximo sábado discutiremos se e como uma conversação entre estes pontos de vista pode fornecer uma alternativa ao relativismo.
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Liberdade como conversação
Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora, ou a um específico “sábio legislador”. A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação

Darwin soube conciliar a racionalidade da sua teoria com a espiritualidade inerente aos seres humanos
Pode o relativismo ser derrotado? Discutimos esta pergunta no sábado passado e observámos que os autores estudados ao longo destes ensaios não forneceram uma resposta inteiramente definitiva. Porém, talvez tenham sugerido algumas referências seguras para enfrentar a pergunta.
Três referências Em primeiro lugar, todos eles sustentaram a inviabilidade do relativismo. Os enunciados de facto ou os padrões de comportamento não podem ser equivalentes ou arbitrários, porque diferentes enunciados ou padrões produzem diferentes consequências. Estas consequências não são equivalentes entre si.
Em segundo lugar, os nossos autores convergiram na necessidade de defender uma esfera de inviolabilidade em torno da pessoa. Se não existir protecção da vida e da liberdade de cada pessoa, não existirão barreiras ao exercício do poder arbitrário. O respeito pela vida e pela liberdade de cada um geram uma presunção favorável à propriedade privada e aos contratos consensuais entre adultos responsáveis. A isto chamaram os nossos autores “the rule of law”, o Estado de direito.
Em terceiro lugar, observámos que todos os autores estudados partilham uma visão crítica do racionalismo dogmático. Por outras palavras, todos eles são críticos da concepção continental ou cartesiana de Razão, com R maiúsculo. Esta concepção cartesiana, com diria Popper, atribui à Razão “a assunção verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou com muito poucos, e mesmo assim obter resultados válidos”.
Conversação Neste sentido, pode ser dito que a resposta dos nossos autores ao relativismo é fundamentalmente negativa. Afirmam que o relativismo é insustentável, mas que a Razão não pode fornecer uma resposta definitiva ao relativismo, precisamente porque não é essa a forma de operar da razão: não faz tábua rasa e começa de novo.
A razão que os nossos autores têm em mente opera aos ombros do conhecimento herdado e da sabedoria herdada. E aborda de forma crítica os problemas ou perguntas específicas que vão emergindo. Sugere então novas soluções e submete-as a teste, através de um processo de tentativa e erro. Isto dá origem a um diálogo, a uma controvérsia, a uma competição ou uma conversação entre concepções concorrentes e tradições concorrentes. Mas a nenhuma é permitida uma supremacia absoluta, de tal forma que possa eliminar todas as concepções concorrentes e redesenhar toda a sociedade de acordo com as suas concepções particulares.
O que acabamos de descrever sucintamente corresponde de facto à vida – política, económica, cultural e também moral – de uma sociedade livre, onde decorre uma conversação permanente: não apenas entre concepções concorrentes actuais, mas também entre o passado, o presente e o futuro, tal como sublinharam Oakeshott e Burke.
Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora ou a um específico “sábio legislador”. A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação.
Fé e razão Esta é precisamente a expressão política da crítica filosófica do racionalismo dogmático que, de diferentes modos, foi desenvolvida por Popper, Hayek, Berlin, Oakeshott, Strauss e Dahrendorf. Poder-se-ia dizer que esta foi uma das preocupações constantes de Edmund Burke, a quem forneceu o móbil para o seu primeiro livro, “A Vindication of Natural Society”.
Esta concepção é ainda particularmente evidente em Tocqueville, quando o autor procura descrever a distinção mais importante entre a América e a França:
“Já disse o suficiente para iluminar com exactidão o carácter da civilização anglo-americana. É o resultado (e deve-se manter isto sempre em vista) de dois elementos distintos, que noutros locais estiveram em desacordo frequente, mas que os americanos realizaram através de, em certa medida, uma junção e uma combinação admirável de ambos. Refiro-me ao espírito de religião e ao espírito de liberdade […] Deste modo, no mundo moral tudo é classificado, sistematizado, previsto e decidido com antecedência; no mundo político tudo é debatido, discutido e incerto. Num deparamo-nos com uma obediência passiva, apesar de voluntária; no outro, com uma independência desdenhosa da experiência e desconfiada em relação a toda a autoridade. Estas duas tendências, aparentemente tão dissonantes, estão longe de ser conflituosas: ambas progridem em conjunto e apoiam–se mutuamente. […]
A liberdade considera a religião sua parceira em todos os seus combates e triunfos, o berço da sua infância e a fonte divina das suas reivindicações. Entende a religião como uma garantia da moralidade, e a moralidade como a melhor segurança da lei e o penhor mais certo da duração da liberdade.”
Gânglio central Uma concepção notavelmente semelhante foi apresentada por Élie Halevy, e retomada por Gertrude Himmelfarb, acerca da Inglaterra vitoriana:
“O utilitarismo, o darwinismo, o positivismo, o racionalismo, o criticismo bíblico e o humanismo ateu – nenhum destes conseguiu arruinar a moralidade, como alguns temiam, nem providenciar um ‘novo motivo’ para a moralidade, como aspiraram Macaulay e outros. Ao limite, o que amparou a ética vitoriana foi essencialmente aquilo que de início a inspirou – um evangelismo não-sectário e latitudinário.
[…] Esse ‘gânglio central’ da vida moral pode bem ter sido o centro nevrálgico da história inglesa. Foi aqui que os irreconciliáveis foram reconciliados, que as paixões foram esfriadas, que os interesses e as ideologias foram silenciados. […] O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a famosa expressão de Halevy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução.”
Gentlemanship Este “gânglio central” da vida moral inglesa exprimiu-se naquilo que poderíamos designar por “um consenso ético pluralista”, cuja expressão é conhecida de todos e ainda hoje é associada aos ingleses, embora tenha caído em desuso e não seja considerada “politicamente correcta”: trata-se do código de conduta do gentleman.
Reconhecidamente de inspiração cristã, o código do gentleman é no entanto suficientemente flexível e ambíguo para poder albergar diferentes tonalidades e, sobretudo, uma conversação entre tonalidades. Mas essas tonalidades entram em controvérsia, por vezes em choque, sobre um consenso comum: o de que o relativismo é uma atitude de bárbaros e de que, algures para além de cada um de nós, existe uma lei moral que nos impõe deveres que são independentes do nosso capricho. O reconhecimento da existência desses deveres – que não são concebidos por ninguém, não são produto da “vontade geral”, mas se impõem à vontade geral – o reconhecimento da existência desses deveres é o que distingue um gentleman.
Ideia de dever Gertrude Himmelfarb recorda que, quando foi perguntado a Darwin quais eram as consequências da sua teoria para a religião e a moral, este respondeu que “a ideia de Deus está para além do intelecto humano, mas a obrigação moral do homem permanece a que sempre foi: cumprir o seu dever”. Macaulay, o grande historiador liberal e agnóstico, criticou o utilitarismo e defendeu a superioridade do cristianismo por este admitir a existência objectiva do dever. George Eliot, depois de todos os seus estudos sobre a filosofia alemã e francesa, acabou por regressar à sua religião original para tentar dar conta do mais importante facto da vida:
“O evangelismo trouxe à palpável existência e acção […] essa ideia de dever, esse reconhecimento de algo que tem de ser vivido para além da mera satisfação do eu, e esse algo constitui o gânglio central da vida moral.”
Burke e Newman Está talvez na altura de recordar que esta ideia, de que o dever não decorre da vontade, era central em Edmund Burke. E foi Burke que nos deixou uma das mais belas imagens sobre a educação de um gentleman:
“Ser educado num lugar de estima; não ver nada baixo ou sórdido desde a infância; ser ensinado a respeitar-se a si próprio: ser habituado à inspecção crítica do olhar público; […] ter tempo para ler, reflectir, conversar; […] ser ensinado a desprezar o perigo no cumprimento da honra e do dever; […] possuir as virtudes da diligência, da ordem, da constância e da regularidade, e ter cultivado uma atenção habitual à justiça comutativa: estas são as circunstâncias dos homens que formam aquilo a que eu chamaria aristocracia natural [por contraste com aristocracia feudal], sem a qual uma nação não pode existir.”
Estas palavras serviram de inspiração ao cardeal John Henry Newman, na sua obra hoje clássica “A Ideia de Universidade”:
“É apropriado ser um gentleman, é apropriado ter um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, leal e desapaixonada, uma atitude nobre e cortês na condução da vida – estas são as co-naturais qualidades de um largo conhecimento, e são o objecto de uma Universidade.”
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Duas culturas políticas
O contraste entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa corresponde a diferenças entre duas grandes culturas políticas. A esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas.

J. Adams, R. Sherman, T. Jefferson e B. Franklin apresentam a Constituição - John Trumbull (1756-1843)
A existência de um “mistério inglês” tinha-me sido sugerida por Karl Popper, em conversa que aqui evoquei no ensaio inicial desta série, a 9 de Maio. Ilustrei esse mistério com a pergunta de Lorde Quinton: por que razão produziram as ideias de John Locke no século XVII inglês uma revolução predominantemente conservadora, ao passo que, quando no século seguinte atravessaram o Canal, produziram em França o efeito de álcool em estômago vazio?
Sugeri que esta pergunta exprime a especificidade da tradição política anglo–americana, que também pode ser descrita pelo “milagre da Inglaterra moderna” de Gertrude Himmelfarb e Elie Halevy: que a Inglaterra tenha realizado todas as revoluções do mundo moderno sem recorrer à revolução.
Encetámos então uma longa viagem através de vários autores que, de forma mais ou menos directa, se interessaram pelo mesmo mistério. Em seguida discutimos vários temas comuns às obras desses autores. Iniciamos hoje a apresentação de uma proposta interpretativa. Ela será desenvolvida neste e nos próximos quatro ensaios – que encerrarão esta série.
Duas culturas políticas. Esta proposta interpretativa sublinha que o contraste entre a tradição anglo-americana e a tradição francesa, ou continental, assenta em diferenças fundamentais entre as culturas políticas dessas duas tradições.
Por cultura política não pretendo designar uma doutrina política particular, como o socialismo, o liberalismo ou o conservadorismo. Também não me refiro ao ideário específico da chamada esquerda, ou da chamada direita, nem mesmo do chamado centro. Por cultura política pretendo designar algo que serve de base a essas divisões: algo que talvez pudéssemos designar como o idioma político, ou as categorias conceptuais, que fornecem as referências comuns ou o pano de fundo sobre o qual rivalizam as famílias políticas. Porque acredito que em todas as rivalidades políticas existem pressupostos comuns que de certa forma dão sentido a essas rivalidades.
Direita e esquerda. Basicamente, gostaria de sugerir que as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa correspondem a diferenças entre duas grandes culturas ou tradições políticas. E gostaria de sugerir que as diferenças entre essas duas culturas políticas são mais importantes que as diferenças entre esquerda e direita ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. Diria mesmo que a esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita noutras culturas políticas.
Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição francesa devem-se menos a características peculiares que a características comuns da esquerda e da direita em cada uma dessas tradições. Em suma, existem conceitos-chave que são partilhados à esquerda e à direita no interior de cada tradição política.
Três conceitos-chave. Esses conceitos-chave são percepcionados de forma muito diferente, quer pela esquerda quer pela direita, quando se muda de tradição política. É ao conjunto desses conceitos-chave, desses pressupostos muitas vezes não explícitos, que chamo “cultura política”.
Gostaria de sugerir que vale a pena observar comparativamente, em cada uma destas culturas políticas, três conceitos-chave: o conceito de revolução, o conceito de ordem social e o conceito de liberdade.
Dois gumes. Antes de prosseguir, devo no entanto sublinhar um esclarecimento que me parece fundamental. No argumento que vou apresentar referir-me-ei a estas duas culturas políticas como ideais-tipo, para usar a consagrada expressão de Max Weber. Não pretendo por isso subsumir toda a riqueza de cada uma daquelas culturas políticas nos traços vincados que vou utilizar. Pela mesma razão, não pretendo que todas as características da cultura política inglesa, ou anglo-americana, sejam positivas, nem que todas as da cultura política francesa sejam negativas.
Em boa verdade, como observou o meu amigo e mestre Seymour Martin Lipset, recentemente falecido, seria possível encontrar contrapartidas negativas para quase todos os traços positivos da cultura política anglo-americana [American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, Nova Iorque/Londres: Norton, 1996].
Se ela tem, no entanto, uma vantagem conclusiva, esta reside na recusa da utopia e no reconhecimento da imperfeição inerente a todo o empreendimento humano. Gostaria por isso que o meu argumento, certamente elogioso para a cultura política anglo-americana, fosse interpretado no quadro falibilista que ela tanto ajudou a fomentar.Revolução? Começando pelo primeiro conceito-chave, o de revolução, eu diria que ele talvez exprima de forma mais patente a diferença entre as duas culturas políticas.
Na tradição francesa, a ideia de revolução está associada a mudança, a progresso, a abertura de espírito. Isso não significa, obviamente, que todas as revoluções mereçam a aprovação de todas as pessoas; mas significa que o ónus da prova recaia sobre aqueles que são contra uma determinada revolução – e que estes, ao tentarem criticar uma dada revolução, estão desde logo numa posição defensiva. Em França fala-se de revolução como sinónimo de progresso: revolução no conhecimento científico, revolução nas artes, nos costumes, na tecnologia, na economia.
É mesmo provável que a expressão “Revolução Industrial”, inicialmente aplicado a Inglaterra, seja de origem francesa. Na verdade, não houve nenhuma “Revolução Industrial” em Inglaterra: houve apenas um longo processo de modernização económica, tecnológica e social, que deu origem ao que chamamos sociedade industrial. Mas essa transformação foi apenas um agregado de inúmeras transformações graduais, descentralizadas e não centralmente dirigidas, cuja génese pode aliás nem ter estado na chamada burguesia, mas na própria aristocracia que iniciou a intensificação da exploração agrícola. Os estudos mais recentes apontam mesmo para as origens medievais e católicas do capitalismo ocidental.
Edmund Burke. Em Inglaterra, com efeito, o termo “revolução” é muito pouco utilizado e raramente com conotação positiva. Talvez um dos grandes responsáveis por este facto tenha sido Edmund Burke, o grande parlamentar whig irlandês que é dado como fundador do conservadorismo moderno, mas que, em Inglaterra, reúne a admiração de grandes figuras da direita e da esquerda.
O percurso de Edmund Burke foi ele próprio muito difícil de qualificar politicamente. Tendo sido considerado o líder intelectual do partido whig (que poderíamos designar como liberal, no sentido de que se opunha aos Tories, os conservadores), Burke destacou-se como defensor dos colonos americanos, dos direitos dos católicos irlandeses, e como severo crítico da administração inglesa na Índia, acusando-a de desrespeitar os direitos dos povos nativos. Mais do que isso, Burke foi um crítico acérrimo do que designou por governo de corte do rei George III, e um dos primeiros teorizadores do papel dos partidos políticos parlamentares modernos, um dos quais deveria sustentar o governo e o outro a oposição.
Só que, em 1789, quando todos esperavam que Burke desse o seu apoio à Revolução Francesa, como se inclinavam a fazer os seus pares liberais, ele desencadeou contra ela uma crítica feroz que ainda hoje constitui um clássico do pensamento político, as célebres “Reflexões sobre a Revolução em França”, publicadas em 1790.
Arcaísmo revolucionário. A crítica de Burke à Revolução Francesa não é feita do ponto de vista da defesa do Antigo Regime ou do absolutismo real – o que seria impossível, dado Burke ter sido sempre um defensor do Parlamento e da limitação do poder político.
Burke criticou a Revolução Francesa por ela querer instaurar um novo absolutismo, ainda mais ilimitado que o anterior. E, sobretudo, criticou a ideia de revolução redentora em termos extraordinariamente modernos: observou que todas as acções políticas provocam efeitos não intencionais e não previsíveis; disse que todos os planos centrais, designadamente os planos de mudança social, falham por não conhecerem a sabedoria descentralizada inerente aos pequenos pelotões e à vida local.
Por outras palavras, Burke descredibilizou a própria ideia de revolução. Fê-lo, não do ponto de vista de manter tudo como está, mas do ponto de vista da maior inteligência da mudança gradual, descentralizada, por ensaio e erro. E foi aqui, na capacidade para adoptar a mudança gradual por ensaio e erro, que Burke situou a superioridade do regime parlamentar inglês.
Revolução relutante. Esta ideia da superioridade da mudança gradual relativamente à mudança revolucionária passou a fazer parte do património comum daquilo que designei por cultura política inglesa.
De forma imperceptível, esta ideia foi adoptada pela república americana, ainda que esta tenha sido aparentemente fundada por uma revolução. Só que – tal como na Inglaterra de 1688, e ao contrário da França de 1789 – a revolução americana de 1776 foi uma revolução relutante. Foi uma revolução liberal, sem dúvida, mas também conservadora, por comparação com a francesa. Visou restaurar liberdades e garantias constitucionais ancestrais, e não delinear uma nova sociedade a partir do zero.
No próximo ensaio desenvolveremos esta diferença crucial.
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Ordem social: livre ou comandada?
Na tradição francesa é difícil conceber que uma ordem social possa funcionar melhor sem ser centralmente dirigida, ou minuciosamente regulada.Na comparação entre a cultura política anglo-americana e a cultura política continental, o segundo conceito-chave é o de ordem social.

O presidente francês, Nicolas Sarkozy, recebe no Palácio do Eliseu, Paris, o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown
[No sábado passado, discutimos o primeiro conceito-chave, o de revolução].Na tradição continental, sobretudo francesa, quando se pensa em ordem social pensa-se numa ordem que alguém terá organizado: um sábio legislador, um grupo fundador, enfim, alguém ou algum grupo que organizou alguma coisa com um propósito determinado.
INTERACÇÃO Na tradição de língua inglesa, pelo contrário, a ideia de ordem social, de instituição social, não está necessariamente associada ao desígnio central de ninguém. Nesta tradição, é frequente ouvir recordar que algumas das mais indispensáveis instituições sociais não foram centralmente desenhadas, simplesmente emergiram como resultado da interacção.
É o caso da família, uma instituição espontânea que emerge da interacção, tal como é o caso da troca, ou do mercado, que também não são desenhados por ninguém. Finalmente, é o caso da língua – a língua inglesa, ou a portuguesa, ou até mesmo a francesa – que não foram centralmente desenhadas.
ESPERANTO Curiosamente, a única língua que foi desenhada, o esperanto, não é falada por ninguém. Ninguém se sente confortavelmente em casa nessa língua – precisamente porque, em vez de ter emergido, ela foi centralmente desenhada. E o mesmo acontece com o mercado e com a família: quando a engenharia política procura redesenhar a economia ou a família, o que produz são economias ou situações familiares disfuncionais.
Na tradição francesa, apropriadamente também chamada cartesiana, é difícil aceitar ou conceber que uma ordem social possa funcionar melhor sem ser centralmente dirigida, ou minuciosamente regulada.
INFORMAÇÃO TÁCITA Na cultura política inglesa, pelo contrário, a presunção é a de que, até prova em contrário, os arranjos locais e descentralizados são preferíveis aos planos ou regulamentos centrais. E são preferíveis, não porque são tradicionais e porque a tradição é sempre melhor do que a mudança, mas porque os próprios arranjos locais são realidades vivas em que há um permanente ajustamento entre tradição e mudança. Esse ajustamento local contém uma quantidade de informação tácita, não escrita, que reflecte as realidades locais e que nunca poderia ser conhecida, muito menos levada em conta, por uma entidade central.
Sobre este conceito de ordem descentralizada resultante da interacção convergem os extensos trabalhos de F. A. Hayek sobre “ordem espontânea”, de Michael Oakeshott sobre “associação civil” e, até certo ponto, de Karl Popper sobre “sociedade aberta”.
QUANDO COMEÇOU OXFORD? Esta preferência pela descentralização e pelo ajustamento gradual com base na experiência é tão arreigada em Inglaterra que, por vezes, dá origem a situações peculiares, dificilmente compreensíveis no continente. A Universidade de Oxford, por exemplo, orgulha-se ainda hoje de não saber a data precisa da sua fundação, algures no século XII – precisamente porque não foi centralmente desenhada, mas emergiu de colégios descentralizados.
Três colégios – Balliol, University College e Merton – disputam entre si a primazia na fundação. E todos os colégios mantêm com zelo a sua autonomia em face dos poderes centrais da Universidade, que, em boa verdade, são extraordinariamente reduzidos. São os colégios que admitem os alunos e não a Universidade.
Os turistas que insistem em visitar a Universidade de Oxford em vez de apenas visitarem colégios ficam surpreendidos quando são confrontados com pequenos edifícios anódinos, basicamente de serviços administrativos, em flagrante contraste com os magníficos colégios e respectivos jardins. Este é outro sinal distintivo da cultura política de língua inglesa: a preferência pela descentralização e pela evolução descentralizada, e a desconfiança em relação a grandes planos centralizados.
CRENÇA NA REVOLUÇÃO Vale a pena observar a ligação entre esta preferência pela evolução descentralizada e o primeiro conceito-chave que discutimos no sábado passado, a animosidade relativamente à ideia de revolução.
A revolução supõe uma crença ardente na possibilidade de mudar centralmente as coisas para melhor. Mas a preferência pelos arranjos locais contém um grande cepticismo relativamente a planos centrais, logo, a mudanças revolucionariamente dirigidas.
Não existe aqui uma animosidade intrínseca relativamente à mudança, mas apenas à mudança centralmente, ou externamente, desenhada. Nos arranjos locais, existe um permanente diálogo entre tradição e mudança, não existe apenas tradição. Só que esse diálogo é ditado pelas conveniências internas de quem vive e conhece as circunstâncias locais – não é ditado por planificadores externos, ou por visões generalistas acerca de um futuro radioso.
NA MINHA CASA Um conhecido ditado inglês – “an Englishman’s home is his castle” – exprime muito bem esta ideia de mudança gradual e descentralizada. Se a casa de um inglês é o seu castelo, isso quer dizer basicamente que ninguém deve intrometer-se na sua casa. Mas não está dito que essa casa permanecerá inalterada para todo o sempre. O que está dito é que ele saberá encontrar as mudanças necessárias para a tornar mais conveniente, mais confortável, e não aceitará que essas mudanças sejam centralmente ou externamente dirigidas por visionários vanguardistas, políticos activistas ou, já agora, por arquitectos autoritários.
Este ponto leva-nos directamente ao terceiro conceito-chave, o de liberdade. Muito foi escrito sobre este assunto e apenas podemos aqui aflorar o tema. Recordarei, no entanto, a famosa palestra de Isaiah Berlin sobre os dois conceitos de liberdade (ensaio de 11 de Julho), para dizer que um desses conceitos é profundamente característico da cultura política inglesa: o conceito de liberdade negativa, ou liberdade como ausência de coerção intencional por terceiros.
LIVE AND LET LIVE A liberdade não tem aqui um conteúdo substantivo: não é libertação através da razão, não é conformidade com um determinado padrão de comportamento julgado “mais livre”, é simplesmente usufruto de um modo de vida pacífico, sem intromissão de terceiros. Este entendimento é usualmente resumido na expressão “live and let live”.
Este conceito de liberdade coloca certamente muitas dificuldades, designadamente a da complacência com modos de vida desviantes, ou excêntricos, o que, na cultura inglesa, tem uma certa conotação positiva. Mas distingue-se por uma enorme vantagem política: resiste a qualquer tentativa autoritária de “obrigar os homens a serem livres”, para usar uma famosa expressão de Jean-Jacques Rousseau.
Na cultura política inglesa, esta expressão não faz sentido. Podemos obrigar os homens a respeitar a liberdade dos outros, e podemos lamentar ou criticar o mau uso que os homens fazem da sua liberdade. Mas obrigá-los a serem livres não faz, em regra, sentido.
CONSCIÊNCIA DA PESSOA No entanto, no continente europeu, muitas perseguições contra a livre consciência das pessoas – designadamente contra a liberdade religiosa – foram conduzidas em nome da liberdade e até do liberalismo, por causa de uma interpretação demasiado ampla do conceito de liberdade.
A liberdade foi muitas vezes abusivamente interpretada como libertação de um indivíduo de crenças, ou convicções, ou tradições que o alegado libertador considera opressoras. Pelo contrário, na tradição inglesa, liberdade não começa por ser definida pelo libertador: tem de ser basicamente definida pelo libertado.
Isso significa que a liberdade é basicamente ausência de coerção intencional por terceiros. A liberdade começa, por isso, na liberdade da pessoa e da sua consciência.
CASAMENTO GAY Muitos exemplos poderiam ser dados para esta diferença fundamental entre a tradição anglo-americana e a continental. Para dar alguma actualidade a estes ensaios, poderíamos citar o dos casamentos homossexuais. É uma típica ilustração de um profundo arcaísmo intelectual, mascarado de grande modernidade.
Em Inglaterra, o assunto foi pacificamente resolvido através de um contrato específico: “civil partnerships”. A ideia é clara. Se um modo de vida reclama protecção legal, e se não produz danos a terceiros, a presunção é-lhe favorável, em princípio e até prova em contrário. Mas é de todo impensável que esse modo de vida imponha as suas concepções particulares a modos de vida preexistentes que não partilham dessas concepções – como é o caso do casamento heterossexual. Por isso (e porque a família heterossexual é uma instituição social espontânea, cuja utilidade social está amplamente demonstrada), o casamento continua reservado para a união entre um homem e uma mulher.
PARES MISTOS Em contrapartida, a defesa da igualdade entre casamento hetero e homossexual é tipicamente continental e jacobina. Visa “libertar” os casais heterossexuais de um modo de vida e de uma visão do mundo em que se sentem confortáveis – mas que a vanguarda considera ultrapassada.
É como se os “pares mistos” no ténis passassem a ser igualados a “pares de qualquer tipo”, apenas porque “pares gay” se sentiam discriminados. Na tradição inglesa, a proposta natural seria que os “pares gay” promovessem os seus próprios campeonatos. A concorrência mostraria depois quantos adeptos e espectadores iriam ter. E a evolução gradual mostraria, através da interacção, que outras soluções poderiam ou deveriam ser adoptadas.
Rousseau e os seus discípulos continentais, no entanto, nunca poderiam aceitar esta ausência de “sistema” e de ardor revolucionário.
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Democracia: liberal ou politicamente correcta?
Na chamada “anglo-esfera”, o mundo de língua inglesa, a democracia liberal, entendida como governo limitado, não tem origem numa qualquer revolução moderna, nem visa reformular a sociedade segundo estes ou aqueles princípios modernos (ou pós-modernos). A democracia liberal, enquanto governo limitado, faz parte de uma velha tradição ocidental e visa sobretudo proteger os modos de vida já existentes.
Por que razão as ideias de John Locke produziram em Inglaterra e na América as revoluções conservadoras ou relutantes de 1688 e de 1766, respectivamente, e, em contrapartida, produziram na França de 1789 o “efeito de álcool em estômago vazio”? Esta foi a pergunta de Lorde Quinton que presidiu à exploração intelectual destes ensaios semanais desde 9 de Maio.
Argumentei nos dois últimos ensaios que a resposta reside na existência de duas culturas políticas substancialmente diferentes: a anglo-americana e a francesa, sendo a segunda particularmente influente no continente europeu.
Apresentei três conceitos-chave que, em meu entender, distinguem a cultura política anglo-americana: 1. Animosidade contra a ideia de revolução; 2. Preferência pelos arranjos descentralizados e pela concorrência entre eles; 3. Entendimento da liberdade basicamente como ausência de coerção intencional por terceiros.
GOVERNO LIMITADO A minha proposta para explicar estas diferenças cruciais consiste em dizer que, na chamada “anglo–esfera”, o mundo de língua inglesa, a democracia liberal foi sobretudo entendida como um sistema de governo limitado.
A democracia liberal, entendida como governo limitado, não tem origem numa qualquer revolução moderna, nem visa reformular a sociedade segundo estes ou aqueles princípios modernos (ou pós–modernos). A democracia liberal, enquanto governo limitado, faz parte de uma velha tradição ocidental e visa sobretudo proteger os modos de vida realmente existentes.
Esta tradição do governo limitado existia antes de Locke e não foi inventada por ele. Em boa verdade, pode ser politicamente referenciada à Magna Carta, de 1215, e culturalmente ao mandamento cristão de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
PLURALISMO Isto significa que a tradição do governo limitado não tem de ser deduzida dos princípios filosóficos primeiros de Locke – ou, já agora, destes ou daqueles princípios primeiros particulares. Por outro lado, isto significa que a tradição do governo limitado pode ser compatível com vários – mas certamente não com todos – princípios filosóficos primeiros particulares. A isto chamamos pluralismo filosófico da democracia.
Gostaria de sublinhar que o objectivo principal deste governo limitado é a protecção de modos de vida realmente existentes e pacíficos (a protecção da vida, da liberdade e da busca de felicidade, para usar as célebres palavras da Declaração de Independência Americana). A isto chamamos pluralismo de modos de vida democráticos.
MONISMO RACIONALISTA Pelo contrário, na Europa continental, sobretudo devido à Revolução Francesa, de 1789, a democracia liberal foi apresentada, em larga medida, como a expressão política de um projecto racionalista, um “modelo” para uma sociedade radicalmente nova. Este “modelo” (“blueprint”) foi inspirado por aquilo que Karl Popper, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin e Ralf Dahrendorf denominaram “racionalismo dogmático”, que Leo Strauss designou por “racionalismo moderno”, e que Michael Oakeshott cunhou apenas com o nome de “racionalismo”, ou “política de fé”, ou ainda “política de perfeição”.
Por outras palavras, enquanto em Inglaterra e na América a democracia liberal surgiu como uma protecção dos modos de vida existentes, na Europa continental a democracia foi associada – quer pelos seus críticos, quer por muitos dos seus impulsionadores – a um projecto de alteração dos modos de vida existentes com vista a atingir o “modelo” de uma sociedade outra, desenhada pela “Razão”.
A RAZÃO CONTRA AS PESSOAS Este projecto pode ter vários modelos como propósito, ou como alvo – a secularização, a modernização dos costumes, a igualdade económica, a neutralidade moral, etc. A sua principal característica é uma atitude adversarial, revolucionária, relativamente aos modos de vida existentes.
Para dizê-lo sem artifícios, esta atitude adversarial resulta principalmente do facto de esses modos de vida já lá estarem, já existirem. São fundados no hábito, ou na tradição, ou na conveniência, ou em “attachments” particulares de que, como brilhantemente captou Oakeshott, as pessoas simplesmente gostam de usufruir. “Stay with me because I am attached to you”, disse Oakeshott, para exprimir este apego inteiramente natural e legítimo das pessoas a modos de vida que lhes são familiares.
ÁLCOOL EM ESTÔMAGO VAZIO Este apego a modos de vida familiares – cuja protecção, na tradição anglo-americana, é o primeiro dever do governo limitado – não é aceitável, nem sequer compreensível, pelo racionalismo continental. E não é aceitável porque esses modos de vida não foram concebidos pela “Razão” (com R maiúsculo).
Por outras palavras, esses modos de vida não podem ser demonstrados por recurso aos princípios filosóficos primeiros que os racionalistas atribuem à democracia moderna. Daqui nasceu a trágica oposição continental entre passado e futuro, tradição e mudança, democracia e modos de vida, ou visões do mundo, pré-existentes ou pré-modernas. Daqui nasceu o efeito do álcool em estômago vazio, de que falava Lorde Quinton.
CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS Devem ser destacadas três consequências políticas desta distinção entre a tradição anglo-americana e a continental.
Em Inglaterra e na América, um compromisso político com a democracia não implica uma uniformidade de concepções sobre temas de filosofia, moralidade ou políticas públicas: as concepções rivais competem entre si, quer entre as elites, quer entre os eleitores.
PRIMEIRA CONSEQUÊNCIA Acresce que esta competição é amplamente encorajada por sistemas eleitorais que não são integralmente dependentes das listas partidárias, e em que existe uma ligação personalizada entre eleitos e eleitores. Pelo contrário, na Europa continental, tendem a ser fomentados um monopólio e uma uniformidade elitista através de uma compreensão enganosa de democracia – a que podíamos chamar, benevolentemente, uma “compreensão progressista” – e através de sistemas eleitorais sustentados nas estruturas partidárias.
Isto tende a criar um fosso entre as elites políticas e os seus eleitores. As primeiras tendem a ignorar os interesses e as visões do mundo dos seus eleitores, enquanto os últimos tendem a sentir-se alienados dos seus representantes.
LE PEN E BLOCO DE ESQUERDA Entre as graves ameaças que isto apresenta à democracia liberal, duas têm de ser referidas: o vanguardismo politicamente correcto (ou o “despotismo da inovação”, como diria Burke) por parte das elites; e a propensão para seguir demagogos populistas radicais e antidemocráticos por parte de sectores significativos do eleitorado. Foi o caso de Le Pen, em França, ou actualmente do Bloco de Esquerda, entre nós.
SEGUNDA CONSEQUÊNCIA A atmosfera moral das democracias europeias inclinou-se e inclinar-se-á ciclicamente para o relativismo. Os democratas europeus tiveram e continuarão a ter enormes dificuldades para fazer face ao relativismo.
Isto pode ser explicado da seguinte forma: o relativismo é um produto inevitável do racionalismo dogmático moderno, que as elites europeias tendem a associar à democracia. O racionalismo dogmático reproduz-se a si próprio, e tende a tornar-se cada vez mais indomável, quando é separado do senso comum das pessoas comuns.
A interacção de uma compreensão racionalista de democracia com sistemas eleitorais que afastam as elites dos seus eleitores promove inevitavelmente sonhos racionalistas indomáveis e uma atmosfera relativista indomável.
Uma vez que a democracia no continente é essencialmente entendida como uma expressão de um projecto racionalista (dogmático), e o racionalismo dogmático conduz ao relativismo, os democratas que não são relativistas, na Europa, lutam desesperadamente por encontrar uma plataforma democrática contra o relativismo.
Esta luta é, e continuará a ser, desesperada enquanto os democratas não relativistas continuarem a procurar uma plataforma dentro do racionalismo dogmático, ou aceitável para ele, isto é, para o racionalismo politicamente correcto.
TERCEIRA CONSEQUÊNCIA A terceira e mais séria consequência reside no enfraquecimento dos alicerces morais da democracia na Europa.
O relativismo destrói os recursos morais e intelectuais que permitem compreender por que razão a democracia liberal é melhor que as alternativas. Por outras palavras, o relativismo tem uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não falar do dever ou da honra, e, hoje em dia, até do conhecimento científico.
No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra “narrativa”. Se tudo é o resultado da vontade arbitrária, por que razão a democracia liberal e a civilização ocidental devem ser entendidas como melhores do que as suas inimigas?
WINSTON CHURCHILL Nos próximos dois ensaios, que encerrarão esta série, veremos como Winston Churchill respondeu a esta pergunta. E veremos como pôde fazê-lo porque o seu entendimento da democracia não assentava nos preconceitos racionalistas modernos, ou politicamente correctos, que, no continente, produziram o “efeito do álcool em estômago vazio”.
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Winston Churchill: Simplesmente, um grande homem
Winston Churchill era abertamente um defensor do capitalismo e do comércio livre. Sabia muito bem que o nazismo e o comunismo pretendiam substituir os mecanismos de mercado e a propriedade privada por uma economia centralizada e militarizada.

Sir Winston Leonard Spencer Churchill - Oxfordshire, 30 de Novembro de 1874 - Londres, 24 de Janeiro de 1965
“Entre as doutrinas do camarada Trotsky e as do dr. Goebbels, deve haver espaço para cada um de nós, e mais umas quantas pessoas, cultivarmos as nossas próprias opiniões”. Esta é uma típica tirada churchilliana, que exprime o que poderíamos designar por “anticomunismo e antinazismo primários” – de que ele muito se orgulhava.
Em 1936, num discurso contra as tiranias nazi e bolchevique proferido em Paris, Churchill exprimiu com clareza e vigor a sua repulsa pelo despotismo: “Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil?”
ÓPIO DOS INTELECTUAIS Hoje, estas palavras podem parecer banais. Mas, na altura, não eram. Na primeira metade do século XX, a maioria dos intelectuais na Europa não sentia grande entusiasmo pela democracia ocidental, para não dizer pior. Foi um período durante o qual o funcionamento das instituições políticas europeias, com excepção das britânicas e das suíças, foi perturbado pela guerra e pelas ideologias revolucionárias.
Os intelectuais tendiam a ser entusiastas fervorosos das marés revolucionárias, fossem da esquerda ou da direita, do comunismo ou do nacional-socialismo. Os revolucionários apresentavam- -se como porta-vozes de um mundo novo. Havia que deixar para trás a inércia da democracia parlamentar e a mesquinhez comercial do capitalismo. A Inglaterra e a América eram vistas como símbolos do velho mundo. Dizia-se que estavam à mercê da “conspiração judaica” e da “plutocracia financeira mundial”.
A Inglaterra e a América eram acusadas de resistir ao novo “Estado total”, centralizado e inovador, introduzido por Lenine e Trotsky, Mussolini e Hitler. Na Europa, muitas pessoas mostravam-se permeáveis às novas tendências: “Sim, o mundo está a mudar”, diziam, “e, tal como o mundo, também nós temos de mudar. A época do mercado livre e do parlamentarismo está a passar”.
Churchill permaneceu imune à linguagem da revolução e da inovação. Dizia-se que era um conservador antiquado que não compreendia os novos tempos. Mas Churchill compreendia bem de mais os novos tempos. E não gostava daquilo que compreendia.Foi por ter assimilado tão profundamente a distintiva tradição política inglesa que Churchill se apercebeu imediatamente da ameaça revolucionária que representavam tanto o bolchevismo como o nazismo.
CONSERVADOR ANTIQUADO Winston Churchill era um admirador da tradição liberal do seu país e do Império Britânico. Estudara Macaulay e aprendera que a Revolução Gloriosa de 1688 – a última revolução que ocorrera em Inglaterra – fora feita com relutância e com o objectivo principal de tornar desnecessárias futuras revoluções.
A linguagem apaixonada da inovação também não o entusiasmava. Churchill estudara Edmund Burke e sabia que a monarquia parlamentar inglesa emergira da resistência contra o “despotismo da inovação” – promovido por monárquicos, ou por republicanos, que aspiravam ao poder absoluto.
Por isso mesmo, Churchill fazia gala em mostrar-se bastante céptico relativamente a modelos de perfeição inovadores. “Temos de nos precaver contra a inovação desnecessária, especialmente quando é orientada pela lógica”, disse numa afirmação que ficou famosa, ao responder em 1942 na Câmara dos Comuns a uma proposta no sentido de se alterarem as designações do Ministro da Defesa e do Secretário de Estado da Guerra, por serem títulos ilógicos.
CONTRA HITLER Em breves penadas, Churchill captou a essência dos dois populismos revolucionários.
No caso de Hitler, por exemplo, recordou as suas origens modestas e o facto de não ter conseguido entrar para a Academia das Artes em Viena, bem como a sua vida de pobreza em Viena e mais tarde em Munique, por vezes como pintor da construção civil, frequentemente como trabalhador sem emprego fixo. Devido a estas circunstâncias, escreve Churchill, “[Hitler] nutria um ressentimento amargo, que ocultava, em relação ao mundo que lhe negara o êxito. Estes reveses não o levaram a ingressar nas fileiras do comunismo. Acalentava cada vez mais um sentimento anormal de lealdade racial e uma admiração fervorosa e mística pela Alemanha e pelo povo alemão. (…) Só e fechado sobre si mesmo, o pequeno soldado reflectia e especulava sobre as possíveis causas da catástrofe [a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial], orientado apenas pelas suas experiências pessoais limitadas. (…) A sua indignação patriótica fundiu-se com a sua inveja em relação aos ricos e afortunados dando origem a um ódio profundo”.
EM DEFESA DO CAPITALISMO É importante recordar estas passagens do livro de Churchill sobre a Segunda Guerra Mundial – e poderíamos citar muitas mais – porque, durante décadas, a propaganda comunista e esquerdista tentou identificar Hitler com o capitalismo. Churchill nunca se deixou impressionar por essa propaganda. Era e permaneceu sempre um defensor do capitalismo e do comércio livre – como recordarei no próximo sábado – e sabia muito bem que o nazismo e o comunismo pretendiam destruir a economia de mercado. Queriam substituir os mecanismos de mercado e a propriedade privada por uma economia centralizada e militarizada.
TIRANIA BOLCHEVISTA Em Janeiro de 1920, Churchill apresentou energicamente a sua opinião sobre a tirania bolchevique:
“Acreditamos no governo parlamentar exercido em conformidade com a vontade da maioria dos eleitores, determinada constitucional e livremente. Eles pretendem derrubar o parlamento através da acção directa ou por outros meios violentos… e, depois, governar as massas da nação de acordo com as suas teorias, que nunca foram aplicadas com êxito, e por intermédio de grupos de políticos auto-eleitos ou panelinhas de adeptos.
Eles pretendem destruir o capital. Nós pretendemos controlar os monopólios. Eles pretendem erradicar a ideia da propriedade individual. Nós pretendemos utilizar o grande trampolim da iniciativa humana como meio de aumentar o volume de produção em todos os sectores e partilhar os seus frutos de uma maneira muito mais ampla e equitativa entre milhões de agregados familiares. Defendemos a liberdade de consciência e a igualdade religiosa. Eles pretendem destruir todos os tipos de crença religiosa que têm constituído uma consolação e inspiração para a alma humana.”
HESITAÇÃO TRABALHISTA Churchill percebeu desde o início que o objectivo do bolchevismo (como sempre lhe chamou) era a revolução mundial e expôs muito claramente a sua posição: “A revolução mundial é o objectivo bolchevique, que eles tentam alcançar tanto em paz como em guerra. Na verdade, a paz bolchevique é apenas uma outra forma de guerra. Se não estão de momento a tentar dominar com exércitos, estão a tentar minar com propaganda”.
Esta posição levou Churchill a opor-se à ascensão do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, não só devido às suas propostas socialistas mas também, e talvez principalmente, devido à sua hesitação face à União Soviética.
“Um governo trabalhista”, escreveu numa carta dirigida ao “The Times” em Janeiro de 1924, lançaria “uma sombra escura e maléfica sobre todas as formas de vida nacional”. Três dias mais tarde, quando o Partido Liberal se juntou aos trabalhistas com o intuito de derrotar os conservadores e fazer de Ramsay MacDonald (líder do Partido Trabalhista), o novo primeiro-ministro, Churchill voltou para o Partido Conservador – de onde saíra para o Partido Liberal em 1904.
Na altura do regresso aos conservadores, em 1924, Churchill afirmou que só este partido oferecia uma base suficientemente forte para conseguir “a derrota efectiva do socialismo”.
Resistir à tirania Foi como líder do Partido Conservador que Winston Churchill dirigiu o governo de coligação nacional e a resistência britânica ao nazismo. No seu primeiro discurso como primeiro-ministro na Câmara dos Comuns, a 13 de Maio de 1940, enquanto ainda estava a formar governo, Churchill anunciou o seu programa de resistência em palavras que ficaram célebres: “Nada tenho a oferecer senão sangue, esforço, lágrimas e suor. Temos perante nós uma ameaça da mais grave natureza. Temos perante nós muitos, muitos longos meses de combate e sofrimento. Perguntam- -me: qual é a nossa política? Eu direi que é a de fazer a guerra, por mar, terra e ar, com todo o nosso poder e com toda a força que Deus nos deu; fazer a guerra contra uma monstruosa tirania, nunca ultrapassada no lamentável catálogo do crime humano. Esta é a nossa política… Perguntam-me: qual é o nosso objectivo? Posso responder numa palavra: é a vitória. Vitória a todo o custo, vitória apesar de todo o terror, vitória por mais longo e árduo que o caminho possa ser; porque, sem vitória, não há sobrevivência.”
TRADIÇÃO OCIDENTAL No próximo sábado, no último ensaio desta série, veremos como Churchill foi capaz de liderar a resistência ao nazismo e ao comunismo porque o seu entendimento da democracia liberal não era devedor dos preconceitos racionalistas modernos. Ele sabia que a democracia era a natural herdeira da tradição ocidental – cujos alicerces assentam nas tradições greco–romana e judaico-cristã, não tendo sido subitamente inventada pelo Iluminismo continental, muito menos pela Revolução Francesa de 1789.
No caso de Hitler, por exemplo, recordou as suas origens modestas e o facto de não ter conseguido entrar para a Academia das Artes em Viena, bem como a sua vida de pobreza em Viena e mais tarde em Munique, por vezes como pintor da construção civil, frequentemente como trabalhador sem emprego fixo. Devido a estas circunstâncias, escreve Churchill, “[Hitler] nutria um ressentimento amargo, que ocultava, em relação ao mundo que lhe negara o êxito. Estes reveses não o levaram a ingressar nas fileiras do comunismo. Acalentava cada vez mais um sentimento anormal de lealdade racial e uma admiração fervorosa e mística pela Alemanha e pelo povo alemão. (…) Só e fechado sobre si mesmo, o pequeno soldado reflectia e especulava sobre as possíveis causas da catástrofe [a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial], orientado apenas pelas suas experiências pessoais limitadas. (…) A sua indignação patriótica fundiu-se com a sua inveja em relação aos ricos e afortunados dando origem a um ódio profundo”.
“Acreditamos no governo parlamentar exercido em conformidade com a vontade da maioria dos eleitores, determinada constitucional e livremente. Eles pretendem derrubar o parlamento através da acção directa ou por outros meios violentos… e, depois, governar as massas da nação de acordo com as suas teorias, que nunca foram aplicadas com êxito, e por intermédio de grupos de políticos auto-eleitos ou panelinhas de adeptos.
Eles pretendem destruir o capital. Nós pretendemos controlar os monopólios. Eles pretendem erradicar a ideia da propriedade individual. Nós pretendemos utilizar o grande trampolim da iniciativa humana como meio de aumentar o volume de produção em todos os sectores e partilhar os seus frutos de uma maneira muito mais ampla e equitativa entre milhões de agregados familiares. Defendemos a liberdade de consciência e a igualdade religiosa. Eles pretendem destruir todos os tipos de crença religiosa que têm constituído uma consolação e inspiração para a alma humana.”
Esta posição levou Churchill a opor-se à ascensão do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, não só devido às suas propostas socialistas mas também, e talvez principalmente, devido à sua hesitação face à União Soviética.
“Um governo trabalhista”, escreveu numa carta dirigida ao “The Times” em Janeiro de 1924, lançaria “uma sombra escura e maléfica sobre todas as formas de vida nacional”. Três dias mais tarde, quando o Partido Liberal se juntou aos trabalhistas com o intuito de derrotar os conservadores e fazer de Ramsay MacDonald (líder do Partido Trabalhista), o novo primeiro-ministro, Churchill voltou para o Partido Conservador – de onde saíra para o Partido Liberal em 1904.
Na altura do regresso aos conservadores, em 1924, Churchill afirmou que só este partido oferecia uma base suficientemente forte para conseguir “a derrota efectiva do socialismo”.
Resistir à tirania Foi como líder do Partido Conservador que Winston Churchill dirigiu o governo de coligação nacional e a resistência britânica ao nazismo. No seu primeiro discurso como primeiro-ministro na Câmara dos Comuns, a 13 de Maio de 1940, enquanto ainda estava a formar governo, Churchill anunciou o seu programa de resistência em palavras que ficaram célebres: “Nada tenho a oferecer senão sangue, esforço, lágrimas e suor. Temos perante nós uma ameaça da mais grave natureza. Temos perante nós muitos, muitos longos meses de combate e sofrimento. Perguntam- -me: qual é a nossa política? Eu direi que é a de fazer a guerra, por mar, terra e ar, com todo o nosso poder e com toda a força que Deus nos deu; fazer a guerra contra uma monstruosa tirania, nunca ultrapassada no lamentável catálogo do crime humano. Esta é a nossa política… Perguntam-me: qual é o nosso objectivo? Posso responder numa palavra: é a vitória. Vitória a todo o custo, vitória apesar de todo o terror, vitória por mais longo e árduo que o caminho possa ser; porque, sem vitória, não há sobrevivência.”
Churchill era abertamente um defensor do capitalismo e do comércio livre. Sabia muito bem que o nazismo e o comunismo pretendiam substituir os mecanismos de mercado e a propriedade privada por uma economia centralizada e militarizada
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Winston Churchill e o “mistério inglês”
Em boa verdade, Churchill era extremamente sensível às condições sociais dos pobres. E aliava esta preocupação social à defesa intransigente da economia de mercado e do comércio livre.
Para Churchill, como para a centenária tradição inglesa da liberdade exercida sob a lei, era que o poder político não deve prevalecer sobre os modos de vida reais e descentralizados das pessoas.
A chamada “questão social” dominou os ataques às democracias ocidentais durante as décadas de 1920 e 1930. Era o tema dominante da propaganda nazi e comunista contra o chamado “capitalismo”. Winston Churchill nunca se deixou impressionar por esses ataques. Em boa verdade, Churchill era extremamente sensível às condições sociais dos pobres. E aliava esta preocupação social à defesa intransigente da economia de mercado e do comércio livre.
MUDANÇA DE PARTIDO As questões da reforma social e do comércio livre – a que os conservadores se opunham – levariam Churchill a abandonar o Partido Conservador e a juntar-se aos liberais em 1904. Nos anos que se seguiram, como membro de governos liberais, Churchill promoveu várias reformas sociais importantes que atraíram a atenção de dois dirigentes socialistas da Fabian Society, o famoso casal Sydney e Beatrice Webb. “Um dos grandes acontecimentos dos últimos dois anos”, escreve Beatrice Webb no seu diário em 1910, “é que Lloyd George e Winston Churchill praticamente eclipsaram não só os seus próprios colegas mas o próprio Partido Trabalhista. Destacam-se como os mais avançados políticos.” E manifestou até o receio de alguns jovens membros da Fabian Society virem a “tornar–se adeptos destes dois dirigentes radicais”.
NÍVEL MÍNIMO Churchill, no entanto, não tinha nada em comum com a ideologia do casal Webb, que advogava a igualdade e o controlo estatal. Churchill defendia que se devia garantir um nível de vida mínimo, e não que se devia promover a igualdade. Falando em Glasgow no Outono de 1906, Churchill explica:
“Não quero retirar vigor à concorrência, mas há muito que podemos fazer para atenuar as consequências do fracasso. Queremos traçar uma linha abaixo da qual não permitiremos que as pessoas vivam e trabalhem, mas acima da qual poderão competir com toda a força da sua virilidade. Não queremos deitar abaixo a estrutura da ciência e da civilização – mas sim estender uma rede sobre o abismo.”
Churchill chamava a esta rede sobre o abismo o “nível mínimo”. Incluía “níveis mínimos de vida e de salário, de segurança contra a possibilidade de cair na ruína devido a um acidente, a uma doença ou à fragilidade de carácter”. Seria uma rede de segurança promovida pelo Estado “por baixo (a um nível inferior) do enorme tecido desconjuntado de salvaguardas e seguros sociais que se formou por si em Inglaterra, mas não para o substituir”.
PREMIAR O ESFORÇO Este sistema não devia, porém, desincentivar o trabalho esforçado, porque, como Churchill afirma:
“Não se deve ter pena de ninguém por ter de trabalhar esforçadamente, porque a natureza inventou uma recompensa especial para o homem que trabalha esforçadamente. Proporciona-lhe um contentamento adicional, que lhe permite obter num breve momento, com base em prazeres simples, uma satisfação que o ocioso social procura em vão ao longo de vinte e quatro horas.”
GOVERNO LIMITADO A principal razão pela qual Churchill se opunha ao comunismo e ao nazismo não era, fundamentalmente, uma questão de doutrina ideológica. Não contrapunha ao comunismo e ao nazismo uma doutrina sistemática rival. O que chocava Churchill era precisamente a ambição, tanto do nazismo como do comunismo, de reorganizar a vida social de cima para baixo, impondo aos modos de vida existentes um plano dedutivo baseado numa ideologia total. No cabo Hitler, no ex-socialista Mussolini e nos ideólogos comunistas Lenine, Trotsky e Estaline, Churchill via o fanatismo grosseiro de homens que queriam demolir todas as barreiras ao exercício irrestrito da sua vontade: as barreiras do governo constitucional, da religião judaico-cristã, do cavalheirismo, das liberdades civis, políticas e económicas, da propriedade privada, da família e de outras instituições descentralizadas da sociedade civil.
TESTE À LIBERDADE Numa mensagem dirigida ao povo italiano em 1944, Churchill apresentou sete “maneiras práticas, bastante simples” de reconhecer a liberdade no mundo moderno:
“Existe liberdade de expressão de opiniões e de oposição e crítica ao governo que se en- contra no poder?
Os cidadãos têm o direito de destituir um governo que considerem censurável e estão previstos meios constitucionais de manifestarem a sua vontade?
Existem tribunais que estão ao abrigo de violência por parte do executivo ou de ameaças de violência popular e sem nenhumas ligações com partidos políticos específicos?
Poderão esses tribunais aplicar leis claras e bem estabelecidas que estão associadas, na mente das pessoas, ao princípio geral da dignidade e da justiça?
Há equidade para pobres e para ricos, para os cidadãos comuns e para os detentores de cargos públicos?
Existe a garantia de que os direitos dos indivíduos, ressalvadas as suas obrigações para com o Estado, serão mantidos, afirmados e enaltecidos?
Está o simples camponês ou operário, que ganha a vida trabalhando e lutando diariamente para sustentar a sua família, livre do receio de que uma qualquer organização policial sinistra controlada por um partido único, como a Gestapo, criada pelos partidos nazi e fascista, lhe bata à porta e o leve para a prisão ou para ser sujeito a maus-tratos sem um julgamento justo e público?”
Esta longa citação mostra que a questão crucial para Churchill, como para a centenária tradição inglesa da liberdade exercida sob a lei, era que o poder político não deve prevalecer sobre os modos de vida reais e descentralizados das pessoas.
O espírito inglês Churchill exprimiu esta atitude de forma particularmente viva ao recordar a filosofia política de Sir Francis Mowatt, um alto funcionário público que servira tanto Gladstone como Diasraeli, os dois líderes rivais da Inglaterra vitoriana:
“Ele representava a completa visão vitoriana triunfante da economia e das finanças: estrita parcimónia; contabilidade exacta; comércio livre, independentemente do que o resto do mundo pudesse fazer; governo suave e firme; evitar as guerras; apenas pagamento das dívidas, redução dos impostos e poupança; quanto ao resto – ao comércio, à indústria, à agricultura, à vida social – laissez-faire e laissez-aller. Deixemos que o governo se reduza e reduza as suas exigências sobre o público ao mínimo; deixemos que a nação viva de si própria; deixemos que a organização social e industrial tome o curso que quiser, sujeita às leis da terra e aos dez mandamentos. Deixemos que o dinheiro frutifique nos bolsos das pessoas.”
Neste sentido, Winston Churchill era fundamentalmente um intérprete e um herdeiro daquilo que o historiador A. L. Rowse denominava “o espírito inglês”. A principal característica deste espírito é a ausência de Angst ou de ennui.
“No centro do espírito inglês está a felicidade, uma fonte profunda de contentamento com a vida, o que explica o mais profundo desejo do inglês, o de ser deixado em paz, e a sua vontade de deixar os outros em paz desde que eles não perturbem o seu repouso.”
DISPOSIÇÃO PARA USUFRUIR Como disseram Bagehot e Oakeshott, trata-se de uma disposição para usufruir, um sentimento interior de felicidade, de celebração da vida. Trata-se da consciência de que é um privilégio poder usufruir de um modo de vida próprio, que nos é familiar e que não foi imposto do exterior. É uma atitude de cepticismo em relação a aventuras políticas, a modas intelectuais e a todo e qualquer especialista que afirme saber organizar melhor a nossa educação, a nossa cultura e a nossa vida espiritual. Em resumo, é uma disposição para desfrutar a liberdade – e para defendê-la a todo o custo.
CORRENTE DE OURO Esta disposição para usufruir a liberdade não nasceu em Inglaterra com o iluminismo ou com a Revolução Francesa de 1789. É uma disposição ancestral que, no plano político, remonta pelo menos à Magna Carta, de 1215. No plano cultural está expressa no mandamento cristão de “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Churchill resumiu esta ideia quando apresentou a filosofia política de seu pai, Lorde Randolph Churchill, um destacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai:
“[Lorde Randolph Churchill] não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”
Por outras palavras, nesta corrente de ouro reside a chave do mistério inglês a que dedicámos estes ensaios.
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