360º Ciência Descoberta

Exposição na Fundação Calouste Gulbenkian – 360º Ciência Descoberta
Comissário: Professor Henrique Leitão | De 2 Março a 2 Junho 2013
360º – Ciência Descoberta é uma exposição sobre a ciência ibérica na época dos descobrimentos. Apresenta os desenvolvimentos científicos e técnicos associados às grandes viagens oceânicas de Portugueses e Espanhóis nos séculos XV e XVI, e o impacto que causaram na ciência europeia. A exposição procura mostrar os diversos factores que modelaram as ideias e as práticas dos ibéricos nesse período – o fascínio com as novidades do mundo natural americano e asiático, a crítica do saber antigo, o estabelecimento de novas práticas empíricas, a disseminação de conceitos científicos pelos estratos menos instruídos da sociedade, os melhoramentos técnicos, os processos e as instituições de acumulação e gestão de novos conhecimentos – e como estes aspectos jogaram um papel significativo no nascimento da modernidade científica europeia.
O título – 360º – Ciência Descoberta – faz referência ao núcleo principal da exposição, isto é, o estabelecimento pelas nações ibéricas de rotas marítimas de escala planetária, e os novos horizontes científicos que elas abriram aos europeus. A exposição estará organizada em torno de quatro zonas temáticas:
  • A imagem do mundo antes das viagens marítimas;
  • O contacto com as novidades da geografia, da botânica, da zoologia, etc.;
  • a criação de novas disciplinas de base matemática e os desenvolvimentos tecnológicos;
  • O impacto da nova imagem do mundo no surgimento da ciência moderna.

360º Ciência Descoberta

Depois da exposição As Idades do Mar, dedicada à pintura europeia e visitada por mais de 50 mil pessoas, a sala de exposições da Sede vai acolher uma mostra sobre a ciência no tempo dos Descobrimentos, onde o mar continua a estar presente já não como fonte de inspiração de artistas, mas nas rotas dos navegadores portugueses e espanhóis dos séculos XV e XVI ao encontro do Novo Mundo.
Intitulada 360º Ciência Descoberta, esta exposição pretende fazer luz sobre uma página muito mal conhecida da história da ciência, na qual Portugueses e Espanhóis surgem como precursores da ciência moderna do século XVII.
Segundo o curador, Henrique Leitão, investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, nunca descobrimos o tom certo para contar esta história, onde não há génios como Copérnico, Galileu ou Kepler, mas há um modo fascinante de acumular e gerir o conhecimento, que se tornou caso único na Europa. Nesta entrevista, Henrique Leitão adianta o que se poderá ver na exposição que abre portas a 2 de março, na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação.

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Marco Padrão Manuelino (Reforma de D. Manuel I), 1499 |  Museu de Metrologia
Qual é o principal foco da exposição?
Queria começar por sublinhar que não se trata de mais uma exposição sobre os Descobrimentos portugueses, mas sim de uma exposição que pretende revelar os contributos científicos dos Portugueses e Espanhóis nos séculos XV e XVI, durante o período das grandes navegações oceânicas, mostrando o impacto que tiveram no eclodir da ciência moderna. É um convite a um novo olhar sobre a nossa História, revelando aspectos desconhecidos do nosso passado científico e lançando luz sobre uma série de fenómenos notáveis associados às viagens empreendidas pelos povos ibéricos e que estiveram na base da modernidade científica.

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Carta náutica de Pedro Reinel, 1504 |  Bayersiche StaatsBibliothek, Munique
A que fenómenos se refere?
A vários, a começar pela revelação dos contornos geográficos da Terra, que passou de coisa conceptual a coisa real. O mundo até então era algo de fechado, de local. Subitamente, dá‑se uma abertura de horizontes com a descoberta de um mundo vastíssimo e totalmente novo. A exposição dará exemplos da evolução dos mapas que, por obra de Portugueses e Espanhóis e em resultado da informação recolhida no decorrer das suas viagens, foram em meia dúzia de décadas passando da forma compacta tipicamente medieval, para a que hoje conhecemos. Mas não foi só na construção da imagem do mundo. No mundo medieval, a incorporação do novo era uma operação rara porque a novidade era muito escassa, mas com as viagens marítimas tudo mudou. Ora, os fenómenos que a exposição pretende mostrar prendem‑se precisamente com o modo surpreendente como os Portugueses e os Espanhóis lidaram com a novidade e a incorporaram.

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Planisfério Terrestre de Claudio Ricardo, 1630 |  Museo Nacional de Ciencia y Tecnologia, Madrid
Pode especificar?
A chegada de cada navio representava a chegada de uma quantidade imensa de novos testemunhos de terras, animais, plantas, raças e costumes que provinham do contacto com um mundo desconhecido. Estas novas informações fizeram não só vacilar muitas certezas antigas, como sobretudo obrigaram a modos novos de as incorporar. Isto representou um extraordinário legado para o mundo das ideias, para a história mental: a novidade passa a ser a regra e não a excepção. É muito difícil crer que a modernidade científica do século XVII tivesse sido possível sem esta revolução operada pela explosão de novidades e de conhecimento, que passou a ser sistematizada de um modo rigoroso.

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Astrolábio, século XVI |  Museu da Ciência da Universidade de Coimbra
De que modo esse conhecimento era sistematizado?
De um modo verdadeiramente notável. Portugal e Espanha criaram aquelas que foram possivelmente as primeiras instituições de gestão do saber na Europa: a Casa de la Contratación, em Espanha, e os Armazéns da Índia, em Portugal. A primeira obrigação destas instituições prendia‑se com a logística administrativa e militar das viagens marítimas, mas começaram também a acolher e a organizar as novas informações que iam chegando. Por exemplo, as muitas novas plantas recolhidas eram observadas e as suas propriedades – curativas, por exemplo – eram analisadas e sujeitas a validação por médicos nacionais. Estas instituições passaram então a responsabilizar‑se pela gestão deste saber e até pela atribuição de preços aos produtos
que seriam postos à venda. Um dos campos em que esta dinâmica se fez sentir mais foi, como se calcula, a Cartografia.

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Globo Celeste de Christoph Schissler, o Velho, 1575 |  Divisão de Documentação Fotográfica da Direcção Geral do Património Cultural
Como se fazia a atualização dos mapas?
Existia um mapa‑padrão que era o modelo de todos os outros e que ia incorporando os resultados das observações que se iam fazendo no decorrer das viagens. Este mapa estava permanentemente a ser actualizado pelos cartógrafos dessas instituições ibéricas. A exposição apresenta, aliás, uma versão animada da transformação do mundo, através de uma mapa que vai lentamente mudando de forma, adquirindo os contornos testemunhados pelos viajantes ibéricos, até atingir a forma que hoje conhecemos.

BRINDEYRA

E como se geria a restante informação que ia chegando?
Houve, nos dois países, um esforço de sistematização do conhecimento acumulado, gerido pela Coroa, que tratou de implementar uma estrutura normativa, através de decretos e regulamentos. Em cada viagem, os pilotos eram instruídos sobre um conjunto muito preciso de observações que deviam levar a cabo e que incluía informações sobre latitude, declinação magnética, correntes marítimas, fauna e flora, etc. Essa informação era depois entregue ao cosmógrafo‑mor, que garantia a organização deste novo saber.
Um saber que era transmitido pelos marinheiros…
Exactamente. Dá‑se um fenómeno absolutamente surpreendente na História da Europa, que foi a transferência de credibilidade dos livros para o testemunho directo. A tripulação dos navios era composta por gente muito simples, pouco instruída, marinheiros, soldados, pilotos, que registavam toda a espécie de novidades. Estes factos eram depois tidos como credíveis e válidos para questionar o saber das autoridades e dos livros: um fenómeno notável.
Outro fenómeno muito interessante e novo foi ter passado a haver gente muito simples a fazer observações astronómicas, a consultar tabelas numéricas, a fazer contas e a usar instrumentos científicos.
Que tipo de instrumentos?
Nesse período assistiu‑se a um grande desenvolvimento das técnicas de navegação relativamente às usadas no Mediterrâneo, que eram um pouco rudimentares. Navegar no oceano Atlântico, pela sua dimensão, obrigava a recorrer a instrumentos mais sofisticados e precisos, com técnicas baseadas na Astronomia e conteúdo matemático. Os Portugueses e os Espanhóis conseguiram habilitar muitas centenas de homens de um nível baixo da sociedade para este trabalho, naquilo que foi um fenómeno nunca antes visto de transferência de conhecimentos técnicos para os estratos pouco instruídos da população.
369ArboldeIndiasE como era dada essa formação?
Na altura existiam poucos astrónomos ou matemáticos competentes e, portanto, eram escassas as pessoas capazes de fazer as medições e os cálculos matemáticos. De repente, foi preciso formar uma imensa quantidade de pessoas com um conjunto mínimo de competências técnicas e científicas. Isto obrigou à criação de espaços de formação fora das universidades, levando ao surgimento, pela primeira vez na Europa, de escolas técnico‑científicas e ao aparecimento de profissionais intermédios entre o mundo universitário e o da artesania. Outra consequência foi o grande incremento do vernáculo como língua técnica. Tudo isto são fenómenos da maior importância para o surgimento da ciência moderna.
Que repercussão teve tudo isto na Europa?
A Europa estava, na altura, de olhos postos na Península Ibérica; muitos observadores, para não lhes chamar “espiões”, deslocavam‑se aos principais centros para recolher informação, que depois atravessava fronteiras e circulava com muita rapidez. No século XVII, as grandes potências marítimas olhavam para Portugal e Espanha como o exemplo a seguir a vários níveis. Não eram só os mapas que eram copiados, também as técnicas e o tipo de ensino técnico que se ministrava, a estrutura das instituições. Há muitos textos que o comprovam.
Por que razão esta história não é contada?
Sobretudo por uma razão simples: até há cerca de 50 anos, a história da ciência era centrada nos grandes vultos: Copérnico, Galileu, Kepler, Newton. Pulávamos de génio em génio e como nenhum deles era ibérico, Portugal e Espanha ficavam literalmente fora. Quando os historiadores de ciência começaram a duvidar deste tipo de narrativa heróica e começaram a alargar o horizonte de análise, incorporando outros actores, as práticas, as instituições, os objectos, etc., o contributo ibérico impôs‑se de forma inequívoca. Vários
especialistas mundiais (alguns dos quais virão à Fundação Gulbenkian proferir conferências em torno da exposição) começaram recentemente a reconhecer a acção precursora dos Portugueses e dos Espanhóis, devolvendo‑lhes o protagonismo esquecido pela narrativa histórica.
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Crocodillus terrestres |  Valencia, Biblioteca Universitat de Valência
Que peças serão mostradas?
Serão mostradas algumas peças inéditas que nunca foram vistas em Portugal e que constituem marcos, pelo seu carácter científico, técnico ou simbólico, ilustrando com eloquência este período de ouro do empreendedorismo ibérico. Entre elas, contam‑se manuscritos, mapas, instrumentos, livros e produtos naturais. Daria talvez destaque a alguns dos mapas magníficos que serão expostos. De Itália, virá o único manuscrito que existe de Pedro Nunes, o grande matemático português, e que nunca foi exposto no nosso país. Em exposição estará também o primeiro globo que existiu na China, do princípio do século XVII, e que tem a particularidade de mostrar pela primeira vez naquele continente, a forma esférica da Terra.

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Tigre  |  Valencia, Biblioteca Universitat de Valência
E que figuras serão destacadas?
Esta exposição não procura heróis. Claro que fará referência a nomes conhecidos como Pedro Nunes ou Garcia de Orta, mas centra‑se sobretudo no esforço comum que envolveu pilotos, cosmógrafos, matemáticos, naturalistas e muitos outros, esforço ignorado por uma historiografia internacional focada nos génios da ciência, e por uma historiografia nacional dada a extremos, oscilando entre triunfalismos e derrotismos.
Uma parede repleta de nomes homenageia cerca de três centenas de pessoas que deram o seu contributo, e que são apenas uma pequena parte de uma multidão que viveu um extraordinário período da História, heróis anónimos de uma página que a História da Ciência saltou e a quem esta exposição pretende fazer justiça. Deixem‑nos agora contar a nossa História.
Fonte dos textos e das imagens: Fundação Calouste Gulbenkian

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