Luís Serrão Pimentel e a ciência em Portugal no século XVII

EXPOSIÇÃO | 28 fevereiro – 30 abril | Sala de Exposições | Entrada livre
Luís Serrão Pimentel, homem de ciência do século XVII, foi resgatado numa exposição
NICOLAU FERREIRA, PÚBLICO DE 1 MARÇO 2014
Cosmógrafo-mor do reino, engenheiro, professor, académico, bibliófilo, vários matizes da ciência portuguesa convergem neste homem pouco estudado.
Uma exposição inaugurada ontem na Biblioteca Nacional, em Lisboa, vem levantar a poeira.

Foto de Oxana Ianin

Uma maquete de Elvas, no piso de cima da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, põe-nos no reino da construção dos fortes. Se há área que Luís Serrão Pimentel marcou foi a engenharia. Em 1680, um ano após a morte do cosmógrafo-mor, foi publicada a sua grande obra sobre engenharia de fortes, que se tornou numa espécie de “manual” da disciplina para os engenheiros do reino. Mas Luís Serrão Pimentel acabou por ser um importante aglutinador da ciência da época. É graças à sua vertente de bibliófilo, e às suas ligações europeias, que hoje é possível estudar-se o único manuscrito existente do famoso matemático português do século XVI, Pedro Nunes, ou o documento descoberto no ano passado do matemático Francisco de Melo, do início do século XVI. Uma exposição na BNP inaugurada ontem reúne, pela primeira vez, material deste homem vindo de vários acervos.
“Luís Serrão Pimentel foi um praticante de ciência de grande interesse que merece ser conhecido”, resume Henrique Leitão, historiador de ciência da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que falou ao PÚBLICO enquanto eram dados os últimos retoques aos objectos da exposição “Luís Serrão Pimentel e a ciência em Portugal no século XVII”. O historiador comissariou a mostra juntamente com Miguel Soromenho, investigador do Museu Nacional de Arte Antiga.
Na exposição de entrada livre, que estará aberta até 30 de Abril, é possível ver códices e livros daquele período relacionados com esta personagem histórica. A sua vida está dividida em três partes: a formação, o trabalho de engenharia de fortes, propagado pelas aulas de Engenharia que deu e, finalmente, a vertente bibliófila, com livros de astrónomos como Johannes Kepler ou Nicolau Copérnico, que terão feito parte da sua biblioteca.
Nos documentos, é possível observar vários desenhos de fortificações e desenhos geométricos. “A fortificação é esteticamente bonita”, diz Henrique Leitão, apontando para os desenhos. “Não se espera que ninguém venha à exposição ler os manuscritos, mas espera-se que se perceba com que tipo de ferramentas intelectuais é que se trabalhava. E aqui é a matemática – o estudo, a utilização, a prática da matemática, é isto que os manuscritos mostram.”
Luís Serrão Pimentel nasceu a 4 de Fevereiro de 1613 na freguesia de Santa Justa. O cosmógrafo-mor foi filho de Lisboa, mas foi também filho da Aula da Esfera, o curso de Físico-Matemáticas leccionado pelos jesuítas do Colégio de Santo Antão. Esta escola esteve activa em Lisboa durante 170 anos, entre finais do século XVI e meados do século XVIII, e trouxe importantes pedagogos da Europa. Do colégio de Santo Antão saíram formados milhares de alunos.
“Sem Aula da Esfera não havia Serrão Pimentel”, diz Henrique Leitão. O engenheiro receberia ainda ensinamentos do cosmógrafo-mor Valentim de Sá, tornando-se assim num “matemático muito competente” e no “grande professor de engenharia militar portuguesa do século XVII”, explica. A restauração da independência de Portugal, em 1640, teve muita influência na carreira do engenheiro. A guerra que se seguiu obrigou Portugal a construir fortificações ao longo da fronteira, principalmente no Alentejo, onde o terreno plano era um convite à entrada do exército espanhol.
“A grande modificação dos fortes da altura é por causa da artilharia”, conta Henrique Leitão. A partir de 1641, o rei D. João IV manda vir grandes engenheiros militares franceses, holandeses e da Flandres, para assistir na construção, ampliação e restauro dos fortes. É neste ambiente que Luís Serrão Pimentel, também militar, trabalhou. O engenheiro planeou e edificou a praça de Évora e acompanhou obras de fortificação de Vila Viçosa, Monsaraz, Elvas, Campo Maior, Portalegre, entre outros. “Ele é o primeiro que aparece como grande teórico e doutrinador desta disciplina.”
Na mostra isso é notório, além de vários exemplares do livro póstumo, de 1680, Methodo Lusitanico de desenhar as fortificaçoens das praças regulares, & irregulares…, estão expostos aquilo que parecem ser livros de bolso, manuscritos ainda feitos em vida. “Ele preparava versões mais pequenas do manuscrito que deixava as pessoas usar”, revela Henrique Leitão. “A especulação é que [estes códices mais pequenos] eram levados para o campo para quando se iam inspeccionar as fortificações.” Já a edição de 1680 é um livro grande, sobre engenharia militar com uma base forte matemática, “normal nos bons tratados”.
Em 1647, Luís Serrão Pimentel é nomeado cosmógrafo-mor, cargo directamente relacionado com o rei. Como tal, o engenheiro, que também estudou Náutica, tinha de fazer exames a pilotos, a cartógrafos, a construtor de instrumentos. Além de ser professor na Aula de Fortificação, uma classe criada por D. João IV, também deu aulas como cosmógrafo-mor.
“Ele tem uma influência enorme na engenharia portuguesa, não só nos homens que forma, mas os seus textos são a referência para toda a gente”, explica Henrique Leitão, que defende o estudo deste material para perceber a ramificação do impacto que o cosmógrafo-mor teve na ciência portuguesa. Para o historiador, mostrar Luís Serrão Pimentel é mostrar um exemplo para as gerações de hoje: “Não há coisa mais destruidora para um miúdo em Portugal do que ouvir dizer que os portugueses não gostam de ciência, de matemática. Enquanto não mostrarmos que houve história científica portuguesa, a história introduz um elemento perverso [na educação].”

‘Juízo Final’, de Michelangelo Buonarroti

Em 1534, vinte e dois anos após concluir o tecto da Capela Sistina, Michelangelo Buonarroti [6 Março 1475 – 18 Fevereiro 1564] deixou Florença e regressou a Roma para atender a uma encomenda do Papa Clemente VII, a de concluir o trabalho na Capela, com a representação de um grande afresco atrás do altar.
No dia em que passam 450 anos da morte de Miguel Ângelo, fica O Juízo Final que o mestre pintou entre 1535 e 1541.


Detail from a large fresco titled ‘The Last Judgement’ painted by Michelangelo (1475-1564) Italian sculptor, painter, architect, poet, and engineer of the High Renaissance. Dated 16th Century. (Photo by: Photo12/Universal Images Group via Getty Images)


La grandiosa composición realizada por Miguel Ángel entre 1536 y 1541 se concentra en torno a la figura dominante del Cristo, representado en el instante que precede a la emisión del veredicto del Juicio (Mateos 25,31-46). Su gesto, imperioso y sereno, parece al mismo tiempo llamar la atención y calmar la agitación circundante: esto pone en marcha un amplio y lento movimiento rotatorio en el que se ven involucradas todas las figuras. Quedan fuera de éste los dos lunetos de arriba, con grupos de ángeles que llevan en vuelo los símbolos de la Pasión (a la izquierda, la Cruz, los dados y la corona de espinas; a la derecha, la columna de la Flagelación, la escalera y la lanza con la esponja empapada en vinagre). Al lado de Cristo se halla la Virgen, que tuerce la cabeza en un gesto de resignación: en efecto, ella ya no puede intervenir en la decisión, sino sólo esperar el resultado del Juicio. Incluso los Santos y los Elegidos, colocados alrededor de las dos figuras de la Madre y del Hijo, esperan con ansiedad el veredicto. Algunos de ellos se pueden reconocer con facilidad: San Pedro con las dos llaves, San Lorenzo con la parrilla, San Bartolomé con su propia piel en la que se suele identificar el autorretrato de Miguel Ángel, Santa Catalina de Alejandría con la rueda dentada, San Sebastián de rodillas con las flechas en la mano. En la franja de abajo, en el centro, los ángeles del Apocalipsis despiertan a los muertos al son de sus largas trompetas; a la izquierda, los resucitados que suben hacia el cielo recomponen sus cuerpos (Resurrección de la carne); a la derecha, ángeles y demonios compiten para precipitar a los condenados en el infierno. Por último, abajo, Caronte a golpes de remo, junto con los demonios, hace bajar a los condenados de su barca para conducirlos ante el juez infernal Minos, con el cuerpo envuelto por los anillos de la serpiente. En esta parte es evidente la referencia al Infierno de la Divina Comedia de Dante Alighieri. Junto con los elogios, el Juicio suscitó entre sus contemporáneos reacciones violentas, como por ejemplo la del Maestro de Ceremonias Biagio da Cesena, quien dijo que “era cosa muy deshonesta en un lugar tan honorable haber realizado tantos desnudos que deshonestamente muestran sus vergüenzas y que no era obra de Capilla del Papa, sino de termas y hosterías” (G. Vasari, Vidas). Las polémicas, que continuaron durante años, hicieron que la Congregación del Concilio de Trento en 1564 tomase la decisión de hacer cubrir algunas de las figuras del Juicio consideradas “obscenas”. El encargo de pintar elementos de cobertura, las llamadas “bragas”, fue dado a Daniel de Volterra, desde entonces conocido como el “braghettone” (Pone-Bragas). Las “bragas” de Daniel fueron sólo las primeras: en efecto, otras se añadieron en los siglos sucesivos.
Via Museu do Vaticano

Musica Aeterna – 450 anos sobre o nascimento de Galileu

Emissão do Musica Aeterna, destinado a comemorar os quatrocentos e cinquenta anos do nascimento de Galileu Galilei [15 de Fevereiro de 1564 – 8 de Janeiro de 1642], físico, matemático e astrónomo de importância fundamental na revolução científica do século XVII, acompanhado de poesia, traduzida por Vasco Graça Moura, de Dante Alighieri extraída da “Divina Comédia”, versando a chegada ao céu da Lua e a teoria das manchas lunares e das influências celestes, e repertório de Giorgio Mainerio, Giulio Caccini, Luca Marenzio, Claudio Merulo, Andrea Gabrieli, Girolamo Frescobaldi, Benedetto Ferrari, Claudio Monteverdi, Emilio de’Cavalieri, Jacopo Peri, Carlo Gesualdo, Gregorio Allegri, Marco da Gagliano, Giovanni Rovetta e Francesco Cavalli, todos contemporâneos de Galileu na Península Itálica dos séculos XVI e XVII.

“Mede o que é mensurável e torna mensurável o que não o é!”

Os 450 anos do nascimento de Galileu Galilei

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Os santos da capela do Museu de Lamego estão a sair dos seus nichos

O Museu de Lamego está a restaurar a Capela de S. João Evangelista, um dos tesouros da arte barroca neste museu que foi construído sobre o antigo paço episcopal da cidade. O trabalho já revelou algumas surpresas, entre as quais desenhos escondidos do edifício original.
Por Sérgio C.Andrade, Público de 10 Fev 2014 | Fotos de Bárbara Raquel Moreira
Santa Clara e S. Miguel, Santa Quitéria e Santo Inácio de Antioquia, Santa Úrsula e S. Lourenço Justiniano, Santa Rosa de Lima e S. Tiago… Não é uma ladainha, nem uma procissão – é o início, apenas, da enumeração das 19 esculturas devocionais que por estes dias podemos admirar, dispostas um pouco ao acaso, sobre uma banca, numa das salas do Museu de Lamego.
A comandar esta espécie de exército da imaginária cristã destaca-se, maior do que os restantes, a escultura de S. João Evangelista. Ele é, afinal, o motivo deste desalojamento temporário das imagens dos seus nichos na capela barroca que lhe é dedicada, e que é uma das três estruturas montadas – e em exposição – no referido museu desde a década de 1930.
Desde Dezembro e, previsivelmente, até à Páscoa, duas salas do edifício estão transformadas num estaleiro para a realização do restauro deste que é um dos tesouros do Museu de Lamego (ver caixa). Há escadas e plataformas, bancas de madeira e barras de metal, berbequins e capacetes, chaves-de-fendas e pincéis, além de um sistema de roldanas e uma máquina parecida com um aspirador, que nos dizem ser “um exaustor de químicos”.
Foi com ela que, depois de retiradas dos nichos, as esculturas foram sujeitas a uma primeira intervenção de limpeza, seguida da fixação e conservação da pintura.

Na exposição que inaugura a 18 de Maio as esculturas retiradas dos nichos poderão ser vistas em todo o seu esplendor, isoladamente
Estas imagens e as pinturas que, no final da semana passada, já tinham sido removidas dos caixotões do tecto, vão ser transportadas para Lisboa para o laboratório da Detalhe, a empresa que ganhou o concurso público para a execução da obra. A parte estrutural da capela será tratada, in-loco, no museu, já que não obriga a tantos cuidados.
“Este trabalho exige técnicos especializados e um cuidado extremo, tanto na desmontagem como no tratamento das peças”, explica Luís Sebastian, director do Museu de Lamego, no decorrer da visita em que guiou e explicou ao PÚBLICO o programa dos trabalhos.
A seu lado, Pedro Martins Santos, que dirige a equipa da Detalhe, diz que esta é uma operação igual a tantas outras que a empresa vem desenvolvendo por todo o país desde que foi fundada em 1998. Mas o trabalho que está agora a fazer em Lamego tem uma particularidade, que é a de poder ser acompanhado pelo público que visita o museu.
“Ainda ontem passou por aqui um grupo escolar, de miúdos pequenos muito curiosos, e que já sabiam o que é uma térmita e o que ela faz à madeira”, conta este técnico de restauro, que vê neste trabalho ao vivo um motivo acrescido de interesse. “Temos que estar preparados para responder.”

A desmontagem de elementos permitiu descobrir pinturas decorativas do antigo paço episcopal
Depois do levantamento das esculturas e da desmontagem do tecto, aquando da visita do PÚBLICO, uma equipa de três técnicos terminava a remoção das paredes da capela. Uma acção que reservaria uma surpresa: por trás da estrutura lateral do retábulo despontaram, naturalmente gastas pelo tempo, pinturas decorativas do antigo paço episcopal, transformado em museu na sequência da implantação da República.
“Quando fazemos este género de intervenções, surgem sempre surpresas, especialmente em edifícios que tiveram várias modelações e várias fases construtivas. Desta vez, foi a descoberta das pinturas”, comentou Luís Sebastian, chamando também a atenção, na parede oposta, para a descoberta de “estruturas em ‘gaiola pombalina’, um sistema de construção inventado e difundido por todo o país após o Terramoto de 1755”. Trata-se de uma quadrícula em madeira, com uma cruz de reforço no meio, preenchida com pedra miúda, tijolo e argamassa, com o objecto de garantir maior consistência e segurança às paredes.
Antigo paço episcopal
O Museu de Lamego foi instalado, no final da primeira década da I República, no antigo Paço Episcopal da cidade. No final dos anos 1920, foi aí depositada grande parte do espólio do antigo Convento das Chagas, desactivado na sequência da lei de extinção das ordens religiosas em 1834, e que entretanto entrou em ruínas (a última freira morreu em 1906).
Entre esse espólio estavam três capelas e um altar-retábulo que foram instalados e musealizados em diferentes salas do edifício, na década de 1930, por decisão da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (a extinta DGEMN). É o caso da Capela de S. João Evangelista e das de S. João Baptista e da Sra. da Penha de França, e ainda do Altar do Desterro. Todos eles foram incrustados e adaptados em salas do edifício existente – no caso da Capela de S. João Baptista, por exemplo, foi mesmo necessário rebaixar o chão para a estrutura caber no espaço.
Luís Sebastian estava convencido de que a instalação do museu tinha feito desaparecer a totalidade do velho paço episcopal, construído no século XVIII – à excepção da capela privada do bispo, com a sua decoração barroca, que se mantém como uma das atracções do museu. Mas a intervenção agora em curso está a mostrar que algumas coisas foram mantidas e aproveitadas, designadamente paredes e decorações.
“Isto é importante para se conhecer a história do edifício, além de que é gratificante podermos recuperar a memória do que foi o paço episcopal”, nota o director do museu. E acrescenta que uma situação como esta levanta sempre questões novas. No imediato, obriga a registar documentalmente, e a estudar e conservar, as pinturas encontradas – o que significa sempre o deslizar dos prazos da intervenção. “Depois, é preciso decidir o que é que vamos privilegiar”, diz Sebastian. Mas acrescenta que, neste caso em particular, “a decisão é pacífica: o retábulo tem que voltar a ser remontado, o que significa voltar a esconder os desenhos”. E ressalva que fica assim “aberta a possibilidade de uma geração futura optar por fazer o contrário”. “Trabalhar mal, seria não deixar esta opção em aberto; a reversibilidade das decisões é essencial neste domínio”, explica ainda o director.

A Capela de São João Baptista é um dos aspectos singulares do Museu de Lamego
Três fases do barroco
As três capelas (e o altar) do Museu de Lamego, para além da beleza e do valor patrimonial de cada um, são expressão da evolução da linguagem do barroco no país. “Esteticamente, temos a sorte de que cada uma das capelas corresponde a um período da produção da talha dourada portuguesa, como a sistematizou o historiador americano Robert Smith.” A afirmação é de Alexandra Braga, historiadora de arte e técnica superior do museu, que nos guiou cronologicamente neste percurso estético. A capela de S. João Baptista documenta um primeiro período do barroco, de estilo maneirista; a de S. João Evangelista é de “uma fase de transição, em estilo híbrido, de passagem do estilo maneirista para o nacional” – nota Alexandra Braga –, sendo a capela de N. Sra. da Penha de França “verdadeiro estilo nacional”, com um barroco “profusamente ornamentado com folhas de videira, parras, cachos, aves”, num regresso aos excessos decorativos do manuelino. O Altar do Desterro já revela características rococó.

Nas capelas do museu pode estudar-se a evolução da talha dourada em Portugal
Para lá da sua relevância estética, o Museu de Lamego é “um caso raro, excepcional mesmo, no país” de uma instituição que instalou integralmente as capelas que recebeu de um anterior convento, diz Anísio Franco, conservador do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).
Se em vários museus do país – como o próprio MNAA – é possível encontrar exemplos de capelas musealizadas, o Museu de Lamego tem a particularidade de ter estes quatro exemplares, que expressam, no seu conjunto, o “conceito de arte total que marcou o barroco”. “Enquanto, por todo o país, muitas dessas capelas foram desmanteladas e vendidas ao desbarato, o que aconteceu em Lamego é exemplar do ponto de vista da salvaguarda do património”, acrescenta Anísio Franco, elogiando também a decisão de se estar agora a restaurar as capelas.
Luís Sebastian diz que o objectivo do museu e da Delegação Regional da Cultura do Norte, que o tutela, é intervir nos outros três retábulos, mas que isso só poderá ser feito quando houver condições financeiras – a actual intervenção está orçada em 25 mil euros, verba que inclui a comparticipação de fundos europeus.
“O ideal seria fazermos um faseamento das intervenções, mas isso seria irrealista no actual estado do país. Temos que ir trabalhando aos poucos, consoante o dinheiro e as oportunidades de financiamento”, acrescenta o director.

Os nichos foram cuidadosamente aspirados
O que está já agendado, e que decorre da intervenção agora em curso na Capela de S. João Evangelista, é aproveitar a circunstância de as imagens terem sido retiradas dos seus nichos para a realização de uma exposição que vai reunir não só estas 19 esculturas em madeira de castanho, mas também todas as que integram os outros retábulos do museu. “Trata-se de retirar as esculturas do seu contexto habitual, em que quase passam despercebidas, e permitir que elas se afirmem na sua individualidade”, diz Sebastian, acrescentando que, ao todo, serão perto de 40 as imagens. A exposição abre no Dia Internacional dos Museus, 18 de Maio, e fecha a 22 de Junho.

Dezoito tesouros nacionais no Museu de Lamego

O Museu de Lamego tem no seu espólio 18 peças que fazem parte da lista dos tesouro nacionais, que agrega o que de melhor as colecções públicas têm para oferecer no que toca ao património móvel. Entre elas há uma arca tumular do século XIV e painéis de azulejos do século XVII, mas os dois conjuntos que merecem uma atenção especial são as pinturas de Grão Vasco e a colecção de tapeçarias flamengas.
De Vasco Fernandes (1475-1542), o nome maior da pintura portuguesa do século XVI, o museu tem cinco obras – Criação dos animais, Anunciação, Visitação, Circuncisão e Apresentação no templo – do políptico de 20 que o bispo de Lamego, D. João de Madureira, encomendou ao pintor viseense para a sé catedral da cidade. As pinturas que restaram da colecção inicial deram entrada no paço episcopal em 1912, tendo depois sido integradas no museu.
Da colecção de tapeçarias flamengas, quatro representam o mito de Édipo e, noutra sala, duas têm por tema O templo de Latona e O julgamento do paraíso. Segundo o Museu de Lamego, estas obras deverão ter sido encomendadas pelo bispo D. Fernando Meneses de Vasconcelos (1513-1540) para a residência episcopal, sendo os cartões que lhes deram origem possivelmente da autoria do pintor flamengo Bernard van Orley e a produção atribuída à oficina de Pieter van Aelst, em Bruxelas.

Pormenor de Visitação, de Grão Vasco

10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte

Por Mário Lopes, in Público de 23 Jan 2014
O álbum de rock progressivo editado em 1978 vai ser interpretado dia 11 de Abril na Aula Magna.
Em 1977, José Cid, então estrela da rádio e televisão com passado de destaque na história da pop portuguesa através da sua carreira com o Quarteto 1111, apareceu na sua editora com uma ideia. Queria gravar um álbum nos antípodas das suas canções que iam então escalando os topes e fazendo o caminho na inscrição na memória colectiva. Um álbum conceptual inspirado no rock progressivo dos Pink Floyd, King Crimson ou dos Genesis, história de redenção pós-apocalíptica contada ao sabor do som do Mellotron, um dos sintetizadores que fez o som da música de então.
10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, assim se intitulou o álbum, gravado com Zé Nabo, na dupla função de baixista e guitarrista, com o guitarrista Mike Sergeant ou o baterista Ramon Galarza, e editado em 1978. À época, vendeu menos de mil exemplares. Passo a passo, porém, foi ganhando lugar de culto na melomania do progressivo (nacional e não só). Passo a passo, tornou-se uma espécie de mito na carreira de Cid – o álbum que gera mais curiosidade, o álbum que seria reeditado em 1994 pela editora especializada Art Sublime, crescendo em reconhecimento até surgir em listas de melhores de sempre na imprensa internacional.
10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte - José Cid
Mais de três décadas depois da edição, 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte vai ganhar nova vida. Em palco. Soubemo-lo quarta-feira, em post publicado no Facebook do cantor. Marque-se então a data: dia 11 de Abril, na Aula Magna, José Cid apresentará não só as canções nele contidas, como Mellotron, o Planeta Fantástico, mas também o anterior, porta de entrada naquela estética musical, Onde Quando Como Porquê (Cantamos Pessoas Vivas), editado em 1975, creditado ainda ao Quarteto 1111 e baseado num texto de José Jorge Letria. Cid aproveitará ainda para revelar algumas das canções que farão parte de Vozes do Além, um prometido novo álbum que recupera o género em que 10.000 Anos Entre Vénus e Marte foi composto.

Rainer Maria Rilke – dar vida à matéria

Torso arcaico de Apolo

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

Rainer Maria Rilke [4 Dez 1875 – 29 Dez 1926] – Tradução de Manuel Bandeira
Piero della Francesca - Resurrection, 1463Piero della Francesca [c.1415-1492] – Resurrection, 1463

 

Quando os Yes reinaram sobre a Terra

Queriam inventar música nunca antes criada e tornaram-se incrivelmente populares nisso. Nos anos 1970, foram uma das bandas mais famosas do planeta mas hoje é difícil vê-los para além da caricatura. The Studio Albums 1969-1987 é o mote para o fazermos.
Mário Lopes, Ípsilon de 27 Dez 2013
E aquele momento em que percebemos como Starship trooper, com o som fluído como líquido da guitarra e o baixo a distorcer e a reverberar, poderia ter inspirado muita da moderna chillwave, o género de reciclagem de memórias sonoras que ouvimos nos Washed Out? E essa canção de Fragile, We have heaven, que, com as suas harmonias vocais incessantes e ritmo seco, quase juramos ser a origem perdida dos Animal Collective? E todas essas secções no interior de longas canções que nos surpreendem: não são os Flaming Lips que surgem reflectidos algures em You and I, de Close to the Edge?, este festim percutivo psicadélico que irrompe quase no final de Ritual (Nous sommes du soleil) não faria as delícias da banda xamã que são os Gala Drop?
Não deveria fazer sentido. Não deveria porque estes momentos pertencem aos Yes, banda-ícone do rock progressivo britânico ao lado de King Crimson, Genesis e Emerson, Lake & Palmer — e provavelmente a mais popular na sua época, logo atrás dos Pink Floyd (que não eram vistos exactamente como rock progressivo, antes como entidade sem filiação).
Como sabemos, o rock progressivo é o saco de pancada predilecto de 95% dos fãs de música. É a música que perdeu porque tinha de perder, soçobrando sob o peso da sua ambição desmedida, do aborrecimento atroz que causava e dos seus insuportáveis ares de superioridade. Isto é onde estamos hoje. O recente lançamento de The Studio Albums 1969-1987, que reúne os 13 álbuns de estúdio lançados pela banda no período (edição simples: CD em caixas de cartão reproduzindo as reedições de 2003 e uma pequena nova ilustração de Roger Dean), é oportunidade para contar o outro lado da história. A que reuniu Chris Squire, baixista extraordinário, ao vocalista Jon Anderson para criar música que reunisse harmonias vocais perfeitas ao perfeito domínio instrumental. Juntaram-se-lhes o impressionante baterista Bill Brufford, o guitarrista Peter Banks e o teclista Tony Kaye e o início da banda sinalizou o nascimento de uma nova era: em 1968, no Royal Albert Hall, foram a banda suporte do concerto de despedida dos Cream, culminar do blues rock psicadélico do final de década de 1960.
Quatro anos depois, já com o guitarrista Steve Howe e o teclista Rick Wakeman a completar a formação clássica da banda, tudo tinha mudado. Tal como muitos dos seus contemporâneos, procuravam chegar onde ninguém chegara antes: uma linguagem nova, em que o virtuosismo instrumental serviria para mostrar o rock como arte maior, como possível ponto de confluência de fôlego narrativo com as aprendizagens do jazz e da clássica. Mas os Yes não se ficaram por aí. Até tão longe quanto meados dos anos 1980, atravessaram quase incólumes a passagem do tempo.
Sobreviveram à saída (e à reentrada) de membros emblemáticos como Steve Howe, Jon Anderson e Rick Wakeman, tiveram na sua formação os Buggles Trevor Horn e Geoff Downes, fãs de longa data, mas aparentemente nos antípodas dos Yes (não é Video killed the radio star um hino à concisão pop da new wave?) e entraram pelos anos 1980 com pompa e circunstância, reinventados sob a forma do monstrengo de rock FM que legou ao mundo Owner of a lonely heart (90125, o álbum correspondente, editado em 1983 e hoje datadíssimo, tornou-se ironicamente o álbum mais vendido na história da banda).
Pouco na sua discografia é consistente do princípio ao fim (The Yes Album, Close To The Edge e Fragile são os que mais se aproximam e as experiências orquestrais no segundo, Time And a Word, merecem destaque), mas o seu período clássico da década de 1970 está repleto de preciosidades. Não por acaso, é na apropriação de excertos seleccionados que a banda melhor tem sobrevivido na cultura popular. Ouvimos o motivo que atravessa Siberian Khatru, tão funk quanto funk eram os Funkadelic, e não nos espantamos por, ao longo dos anos, a música dos Yes ser mina a que o hip-hop recorre regularmente (De La Soul, J Dilla, Nas, LL Cool J, Lil Wayne, Salt-N-Pepa). E, no entanto, é como se os Yes não existissem além da caricatura — nem a presença na banda-sonora de Buffalo 66, filme de culto de Vincent Gallo, os tornou vagamente cool.

Ambição

Estamos em 1973. O jornalista destacado para cobrir um concerto da digressão de uns Emerson, Lake & Palmer no auge da sua popularidade concentrou-se naquilo que mais interessava. O material. Discriminou então o número de teclados (às dezenas) de Keith Emerson, as peças que compunham a bateria que haveria de quase esconder do público Carl Palmer e o preço de milhares de libras que custara o tapete persa pisado pelo guitarrista Greg Lake. Um concerto dos Emerson, Lake & Palmer não era simplesmente um concerto. Era uma extravagância, uma experiência wagneriana. Era arte total, diriam as centenas de milhares que enchiam estádios para os ver. Nem todos classificavam a experiência da mesma forma.
Rick Wakeman, teclista de um período em que os teclistas foram elevados ao estatuto de superestrela, não ficava atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Famoso pelas extravagância e pelas capas douradas brilhando entre os mil teclados, Wakeman contabilizou vendas de dezenas de milhões dos seus álbuns a solo e apresentou-os em produções que incluíam bailarinos representando no gelo a história do Rei Artur.
Os Yes também não ficavam atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Na sua autobiografia, Grumpy Old Rock Star, Wakeman fala da digressão de Tales Of Topographic Oceans (1973), o pináculo de ambição dos Yes, álbum duplo com quatro canções apenas, uma para cada um dos lados dos dois vinis. Conta, caricaturizando, que precisava de indicações sempre que subia a palco, de forma a conseguir ultrapassar os adereços idealizados por Roger Dean, autor das mais icónicas capas da banda: “Vira aqui à esquerda, Rick, trepa aquele cogumelo gigante, ultrapassa a nave e lá atrás, atrás daquela nuvem, estão os teus teclados”.
Wakeman escreve também que Spinal Tap, o mais famoso falso documentário sobre o circo rock, lhe parece quase realista: “Com os Yes nós vivemo-lo.” Seguem-se episódios que parecem realmente saídos do filme, envolvendo um baterista (Alan White) preso no interior de conchas gigantes ou túneis perigosamente frágeis que a banda atravessava para chegar ao centro da acção. Foi por coisas como estas que se chamou à década de 1970 “a década que o bom gosto esqueceu” — por isso e pelos álbuns conceptuais de guião simplório ou simplesmente pateta, pelo disco-sound ou pela imagem de Elton John enfiado num fato do Pato Donald.
Acontece que o disco-sound foi entretanto justamente reabilitado, reenquadrado e reciclado e que os álbuns clássicos de Elton John (pelo menos esses) ganharam o seu lugar respeitável na história da música popular. Os Yes? Os Yes sofreram o mesmo que a maioria dos seus contemporâneos britânicos do progressivo. Ou seja, tal como os Emerson, Lake & Palmer ou os Gentle Giant, são como que uma não-existência na historiografia pop (a excepção são os King Crimson, hoje referência a citar devido à alta cotação do magnífico primeiro álbum, In the Court of the Crimson King, samplado em Power, de Kanye West, e os inclassificáveis Van der Graaf Generator, que atravessaram os tempos incólumes enquanto banda de culto).
A queda
A narrativa oficial diz-nos que o punk chegou para acabar com aqueles dinossauros do rock e para regenerar um cenário habitado por estrelas num pedestal, a partir do qual mostravam o seu carácter divino à populaça através de um virtuosismo inalcançável e ambições teatrais que minavam a ideia do rock como rebelião sincera e autenticidade. Com o punk, diz a narrativa, acabou num ápice, e para não mais voltar, a era de terror do rock progressivo. Mas então…
Em 1977, o ano de explosão mundial do punk, quem podíamos encontrar no topo das tabelas de vendas inglesas? Os Yes, com Going For The One, o álbum em que começaram a descer dos céus das canções de 20 minutos — nos Estados Unidos, chegaram a oitavo lugar. Anos antes, enquanto os Led Zeppelin passeavam pelo mundo como representação máxima do rock’n’roll enquanto bomba sexual, a crítica desdenhava-os. Preferia os Emerson, Lake & Palmer. E Lester Bangs, o mítico crítico americano com altar erguido aos Velvet Underground e a Lou Reed, ele que escreveria sobre o rock progressivo “se não consegues ter verdadeira qualidade, porque não escolher quantidade a uma escala bizantina, porque não ser pomposo se és bem-sucedido a sê-lo?”, elogiava com convicção The Yes Album (1971), o terceiro da banda, aquele em que ficou perfeitamente definido o seu imaginário musical, a sua procura de futuro nos circuitos eléctricos de um sintetizador Moog.
Era música difícil, aquela. Música de alguém que pretendia dar o passo seguinte na história da música popular urbana e escapar à alegada prisão das canções pop de três minutos. Segundo Jon Anderson, tudo começou, curiosamente, quando a sua geração viu os Beatles e os Rolling Stones na televisão e, citamo-lo de cabeça, percebeu que eram pessoas comuns e que, portanto, as pessoas comuns podiam ser estrelas de música — exactamente o mesmo que diriam retrospectivamente aqueles que pegaram em guitarras depois de ver os Ramones ou os Sex Pistols.
Mas esta música complexa e nada imediata reinou durante quase toda uma década. Era incrivelmente popular, vendida aos milhões atraindo milhões às salas de concertos. Atraindo quem? “Hippies. Adolescentes. Fãs que estavam certos de haver algo mais aí fora. Pessoas que queriam tomar ácido e ter as suas pupilas bombardeadas com lasers. Tipos arty que queriam encontrar na música um sentido”, escrevia David Weigel, jornalista de política da Slate, conservador libertário, “maluquinho do prog”, numa série de artigos dedicados ao género publicados em 2012 no Salon.

Yes-Relayer

Eles experimentaram e procuraram de forma febril, delirante e, a partir de determinado momento, tremendamente onanista, música que nunca antes havia sido feita. Chegaram tão alto e a caíram lá tão de cima que, quando finalmente se estilhaçaram no chão da memória, só os indefectíveis tinham esperado para ver e só os indefectíveis prosseguiram com eles (fervorosamente, como atesta qualquer navegação pelos milhares de sites dedicados ao prog por essa Internet fora).
Tão cedo quanto 1973, Chris Welch, veterano jornalista musical britânico, escrevia acerca de A Passion Play, álbum conceptual dos Jethro Tull, que “se é a isto que nos trouxeram de anos de ‘progressão’, então será tempo de voltar atrás”. Os heróis do prog, embriagados pelo dinheiro correndo abundante que lhes alimentava a ambição mas lhes diminuía o critério, nem chegaram a travar. Fizeram como sempre. Aceleraram.
Sim, tiveram a sua quota-parte de culpa. Mas não o suficiente para serem transformados em fantasmas da história. “É estranho, sabe? Uma canção como Siberian Khatru [de Close to the Edge, 1972] soa mesmo hip hoje em dia”, dizia no ano passado o baterista Bill Brufford à Rolling Stone. É realmente estranho. É estranho que seja verdade.

Natal

Um anjo imaginado, 
Um anjo diabético, atual, 
Ergueu a mão e disse: — É noite de Natal, 
Paz à imaginação! 
E todo o ritual 
Que antecede o milagre habitual 
Perdeu a exaltação. 

Em vez de excelsos hinos de confiança 
No mistério divino, 
E de mirra, e de incenso e ouro 
Derramados 
No presépio vazio, 
Duas perguntas brancas, regeladas 
Como a neve que cai, 
E breve como o vento 
Que entra por uma fresta, quizilento, 
Redemoinha e sai: 

A volta da lareira 
Quantas almas se aquecem 
Fraternalmente? 
Quantas desejam que o Menino venha 
Ouvir humanamente 
O lancinante crepitar da lenha? 

“Natal”, de Miguel Torga
“Adoração dos magos” (painel da esquerda – detalhe), de Hieronymus Bosch

O dia não me promete mais que o dia…

Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra – ou, antes, de luz e de menos luz – a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança – estão ligados em música pela mesma intenção melódica; estão ligados na lama pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo a cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve não foi minha: foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem incarnei sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Amanhecer em Lisboa – 18 Dez 2013
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, pois sairei daqui como para aqui vim – mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há-de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas – é natural, é extensa, é combinada. Mas ainda no ver disto tudo poderei eu esquecer que existo? A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã, e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma – a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.
Bernardo Soares – 119

A embriaguês na poesia de Omar Khayyam

Alireza Ghorbani e Dorsaf Hamdani estiveram em 2012 na Gulbenkian para um encontro entre os cantos persa e árabe, centrado na obra poética de Omar Khayyam, astrónomo, filósofo e matemático iraniano do século XI.
Da edição 2014 de Músicas do Mundo, destaque óbvio para Christina Pluhar – L’Arpeggiata, com a presença especial de Mísia.