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Jos d`Almeida no Festival “Músicas pelo Espichel”

Por inúmeras razões, a actuação do mano foi o concerto do ano. Vá, do mês. Pronto, foi a meia-hora mais bem passada da noite. Os vídeos das actuações estão disponíveis no sítio da Sesimbra TV.

Por  Sandra Brasinha, Jornal de Noticias de 12-09-2010
Mais de três mil pessoas lançaram um apelo conjunto para que o Santuário do Cabo Espichel, em Sesimbra, seja requalificado. A chamada de atenção foi feita no dia 10 durante o festival “Músicas pelo Espichel”, que durou quase dez horas.
Quer o público, a organização, as 15 bandas que subiram ao palco e a Câmara de Sesimbra assumiram-se contra o abandono a que o santuário, que em Novembro comemora 600 anos, tem sido votado nos últimos anos.
Todos exigiram medidas urgentes para dignificar aquele património.
Há já 15 anos que o Estado detém a posse do monumento, mas apesar do compromisso assumido de reabilitar a ala Norte, que lhe foi cedida pela Confraria de Nossa Senhora do Cabo, nada foi feito até agora.
A Direcção-Geral do Tesouro e Finanças está actualmente a fazer a avaliação do imóvel para decidir se aceita a proposta apresentada em Julho pela autarquia, que necessita de ter a posse do santuário para poder negociar com possíveis investidores.
“Uma vez que há terrenos cedidos e que ainda não estão na posse do Estado propusemos uma permuta, porque o Estado não pode formalmente doar-nos o imóvel. Tem de haver uma contrapartida”, explicou ao JN o presidente da Câmara, Augusto Pólvora, criticando o facto de o Estado não poder pura e simplesmente devolver o bem à confraria. “Receberam de borla, não fizeram nada e agora querem receber. É uma situação completamente absurda”, considera o edil, pedindo celeridade na resolução do problema.
O impasse levou o cidadão sesimbrense Carlos Sargedas a criar um movimento de solidariedade pela requalificação do Cabo Espichel, cujo programa teve anteontem o seu ponto alto, com a realização de um festival a que mais de três mil pessoas não quiseram faltar, bem como as 15 bandas que actuaram gratuitamente.
“Quero acreditar que pelo menos dentro de dois anos a obra esteja começada e que façam do Cabo Espichel o uso que ele necessita”, salientou Carlos Sargedas, fazendo um balanço positivo do evento gratuito que custou à organização cerca de 250 mil euros.
“O que está aqui é completamente genuíno”, adverte, propondo que as obras de requalificação avancem gradualmente. “Há pessoas interessadas em investir e portanto não é por falta de dinheiro que não se faz”, acrescenta. “Este concerto é um acto de cidadania de todos nós. Estamos a avisar que queremos que este espaço seja recuperado”, alertou o vocalista dos UHF, a banda cabeça de cartaz do festival. “O Cabo Espichel é uma ordem de prioridades. Este espaço tem magia”, considerou António Manuel Ribeiro, desejando que o pó que se levantou na noite de anteontem “seja amanhã a argamassa usada para construir um novo edifício”.
O vocalista dos Alcoolémia, João Beato, desejou, por seu lado, que num “domingo destes” quando se deslocar ao Cabo Espichel em passeio “o monumento esteja recuperado totalmente”, sugerindo que sejam recriados os costumes de antigamente com a reconstrução de algumas salas com mobília da época “para que se possa conhecer o que foi o santuário”.
Um centro de interpretação do Cabo Espichel, um espaço museológico ligado à geologia e paleontologia, lojas de artesanato no local das casas de outrora, espaços de restauração e uma residencial são algumas das propostas idealizadas para o santuário.
Agora, há também o desejo de que o “Músicas pelo Espichel” se torne o último grande festival de Verão em Portugal.

Foto de José António Marques

A arte da harmonia

Musica Aeterna, por João Chambers – Sábado 18 às 14h00

Os primórdios da harmonia, dois dos seus princípios essenciais – o ritmo e o som – e as criações de Joseph Martin Kraus, Wolfgang Amadeus Mozart, Nicolas Champion, Philipp Heinrich Erlebach, Josquin Desprez, Johann Sebastian Bach, Guillaume de Machaut, Canto Gregoriano e de um autor anónimo.


Evaristo Baschenis – Still-Life with Instruments, 1667-1677
A arte da harmonia consiste em conciliar os sons de um modo horizontal – a melodia – ou vertical – os cordes, sendo a extrema simplicidade deste facto bastas vezes esquecida em polémicas tendentes a fornecerem doutrinas mais desenvolvidas. Na realidade, por vezes questiona-se, inclusive com exaltação, se aquela ciência não existirá, basicamente, para a “projecção da personalidade” do seu criador como um meio de comunicação com o ouvinte ou, em alternativa, para a sensibilização deste através da experiência emocional.
Seja qual for a perspectiva tomada a respeito da sua genuína finalidade, a verdade a persistir sempre será a de que, em música, a teoria consiste em dispor as notas de modo a que o resultado final possa ser basilar. Existe também quem assente no axioma das sonoridades deverem conter beleza sem, contudo, reparar que, nessa circunstância, estará a fazer uma exigência ilógica. Um som cadenciado não é forçosamente arte, tão pouco uma agradável sucessão deles constituirá uma simetria a não ser que haja algum raciocínio nessa sequência, ou seja, serem organizados. A questão é que a harmonia mantém-se em ambos os casos a mesma e, em consequência, não deve estar implicada no nosso juízo de valores. A respectiva narrativa não significa, pois, a história de formas consonantes, mas apenas a do esforço consciente do indivíduo para as manipular, conduzindo-nos inevitavelmente à seguinte dúvida:
“Como procedeu afinal o homem?”.
João Chambers

Heróis Lusitanos – Cristóvão da Gama

Cristovão da Gama (Évora, 1515 – 29 de Agosto 1542), irmão de D. Estevão da Gama, o então Vice-Rei da Índia, era filho de Vasco da Gama e de D. Catarina de Ataíde.
Recebeu o cargo de capitão de Malaca e o de fidalgo da Casa Real depois de voltar da Índia (para onde tinha ido em 1532, na frota de Pedro Vaz do Amaral), e como recompensa da bravura lá demonstrada. Efectuou diversas empreitadas depois de voltar à Índia em 1538 sob a direcção do seu irmão, enquanto este foi governador. Em 1541 acompanhou-o na expedição de Goa ao Mar Vermelho, uma armada de 75 velas com o objectivo de queimar as naus turcas em Suez, em que tomou parte honrosa.

No entanto, o reino da Etiópia estava sob ameaça dos muçulmanos e, acudindo ao apelo do Imperador Cristão da Etiópia, os portugueses intervieram militarmente enviando para isso uma expedição de 400 homens bem armados, equipados com arcabuzes e artilharia montada em carros.

Foi esta a resposta portuguesa aos pedidos de auxílio do Imperador Cláudio, atacado por forças islâmicas provenientes da área da actual Eritreia, que lhe ocupavam já grande parte do seu reino. Após o desembarque em Massáuá, a hoste portuguesa internou-se em território abissínio e defronta, por duas vezes, sem outros apoios, os exércitos de Ahmad al Ghazi, que derrota nas batalhas de Amba Sanayt e dos campos de Iarte. Contudo, inexplicavelmente, Cristóvão da Gama não faz a junção com o grosso das tropas abexins, enquanto o adversário recebeu reforços turcos, em arcabuzeiros e artilharia de campo, retirando-lhe assim a vantagem tecnológica de que dispunha inicialmente. A Batalha de Ofla, em Agosto de 1542, foi um desastre para a expedição portuguesa; pese embora a coragem demonstrada, o número avassalador dos inimigos, agora reforçado por turcos bem armados, levou a melhor, tendo Cristóvão da Gama sido capturado e posteriormente decapitado, pelo próprio Ahmad al Ghazi.

A obra “Historia das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou” (1564), de Miguel de Castanhoso, relata este episódio.

Entretanto, aproveitando este período, o Imperador Cláudio reconstituiu o seu exército e, reforçado com os cerca de 100 portugueses sobreviventes, defronta as forças islâmicas em princípios de 1543, obtendo uma estrondosa vitória. Terá sido mesmo um arcabuzeiro português quem conseguiu abater o chefe inimigo, o que naturalmente produziu um efeito psicológico negativo no exército oponente que, batido, se põe em fuga.

As consequências desta pouco conhecida intervenção portuguesa são muito importantes, pois permitiram a manutenção do Império Etíope, de religião cristã, que então se encontrava à beira da derrota e, possivelmente, do desaparecimento.

Foi o início da derrocada do Império africano, que nunca chegara a existir. No ano seguinte, o rei mandou abandonar Safim, que tinha sido um dos pilares fundamentais da tentativa marroquina e chegou a ser sede de um bispado. Em 1549 saímos de Arzila e em 1550 de Alcácer-Ceguer. Estes abandonos resultavam da necessidade de concentrar no Oriente todos os recursos A área da nossa influência continuava ali a crescer. De Malaca partiu-se para a exploração económica dos portos chineses; em 1557 foi-nos reconhecida a posse pacífica de Macau, que, até aos fins do século XVII, serviria como o principal entreposto de comércio da China com os mercados da Índia e ponto de partida dos portugueses para as ilhas do Japão.

Fontes: Wikipedia, História de Portugal e Revista da Marinha

Tapeçarias de Pastrana – Panos de História

Estão próximos os dias em que a guerra nos entra em casa em directo e a 3D. Imagino a dificuldade dos repórteres de hoje em serem criativos o suficiente para relatar os acontecimentos, tendo que competir com a imagem e o vídeo. Em suma, fazerem a história.
Foi o que me ocorreu, ao percorrer as enormes tapeçarias, como se de um filme animado se tratasse.
Não sei quem imaginou as batalhas de Arzila e Tânger, relatadas nas quatro telas, mas o trabalho final é assombroso!

As míticas Tapeçarias de Pastrana estão em Lisboa, por Alexandra Prado Coelho.

Saídas misteriosamente do país no século XVI, as tapeçarias de D. Afonso V estão no Museu de Arte Antiga – pela primeira vez expostas em Portugal
D. Afonso V não pôde levar consigo repórteres de imagem quando tomou Arzila e Tânger. Não houve reportagens em directo, relatos ao vivo por jornalistas a falar para as câmaras enquanto, ao fundo, as tropas cercavam as cidades do Norte de África e venciam batalhas. Estávamos no final do século XV e a forma mais aproximada que o rei português tinha de registar os seus feitos era mandá-los tecer em tapeçarias. Foi o que fez.

Agora, pela primeira vez, as quatro Tapeçarias de Pastrana encomendadas por D. Afonso V – enormes panos de armar com quatro metros de altura e 10 de largura – podem ser vistas (até 12 de Setembro) no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). D. Afonso V e a Invenção da Glória é inaugurada hoje na presença das ministras da Cultura de Portugal e de Espanha, Gabriela Canavilhas e Ángeles Gonzáles-Sinde. Desde o século XVI que as tapeçarias – agora completamente restauradas, num processo conduzido pela fundação espanhola Carlos de Amberes – não estavam reunidas em Portugal.

Como é que os quatro panos saíram do país é um mistério ao qual os historiadores não conseguiram ainda responder. “É muito misterioso”, diz o director do MNAA, António Filipe Pimentel. Produzidas nas oficinas flamengas de Tournai no último quartel do século XV, “entrarão em Portugal provavelmente já no reinado de D. João II, e em 1532, poucas décadas depois de terem sido feitas, aparecem em Espanha, no inventário dos bens dos duques do Infantado”. Como foram lá parar, ninguém sabe.

O que se sabe é que foram herdadas pelos duques do Infantado, que mais tarde as cedem à Colegiada de Pastrana, onde ficaram desde então. O mundo esqueceu-as. Até que, no início do século XX, os historiadores de arte portugueses José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos as “encontraram” em Pastrana.

“Durante o período da ditadura, Salazar tentou recuperá-las”, contou ontem, numa conferência de imprensa no MNAA, o secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle. Mas conseguiu-se apenas, na década de 1930, fazer cópias, que estão no Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. É por isso que a exposição que o MNAA agora apresenta é considerada de extrema importância – resulta de uma colaboração com Espanha (e coincide com o 25.º aniversário do tratado de adesão de Portugal e Espanha à União Europeia).

Por detrás dos participantes na conferência de imprensa está uma das enormes tapeçarias – a que conta a tomada de Tânger e a única em que D. Afonso V não aparece. Ao fundo vê-se Arzila, já conquistada, as tropas portuguesas avançam pelo lado esquerdo em direcção a Tânger, que, no meio do pano, se mostra já deserta. Os seus habitantes, esses estão à nossa direita, saindo da cidade. “O sultão de Tânger estava ocupado com o ataque a Fez quando as tropas portuguesas se dirigiam para a cidade”, explica António Pimentel. “Negoceia a rendição e os habitantes abandonam a cidade. É uma ocupação, não uma conquista, e por isso o rei abstém-se de se associar explicitamente a este episódio.”

Imagem para a posteridade

Nas três outras tapeçarias – que contam o Desembarque, o Cerco e o Assalto a Arzila – o rei aparece identificado pelo seu estandarte, um rodízio que asperge gotas, e pela mais bela das armaduras e os mais ricos panos brocados. As tapeçarias (duas das quais foram cortadas em baixo) lêem-se como uma banda desenhada – ou, como dizia Miguel Angel Aguilar, presidente da Fundação Carlos de Amberes, como uma “reportagem de actualidade”.

No Desembarque assistimos ao precipitar das tropas que enfrentam um mar agitado, seguindo o rei, que avançara primeiro para dar o exemplo. Mas alguns homens têm menos sorte do que o monarca e acabam por morrer afogados.

Na tapeçaria sobre o cerco, Arzila, com os seus telhados de telhas e as suas torres, parece uma cidade do Norte da Europa. Ao longe a frota portuguesa impressiona. Do lado esquerdo, o príncipe, do direito, o rei, a toda a volta os soldados, dezenas de rostos, de armaduras de pormenores (estes só se vêem verdadeiramente no pequeno filme de Catarina Mourão que passa numa sala lateral).

Por fim, o assalto. Reza a história que o alcaide de Arzila tentou render-se, mas o rumor de que a cidade já teria caído levou as tropas a avançar. A tapeçaria – como se fizesse um zoom à imagem do cerco – mostra a batalha e a vitória portuguesa.

Quando encontrou as tapeçarias em Pastrana, Reynaldo dos Santos colocou a hipótese de os cartões que lhes serviram de base serem da autoria de Nuno Gonçalves, o pintor a quem são atribuídos os Painéis de São Vicente. Essa hipótese foi entretanto afastada, mas, frisa António Filipe Pimentel, mostrar as tapeçarias ao lado dos painéis – algo que só é possível em Lisboa, porque os painéis não podem sair do museu (as tapeçarias estiveram anteriormente expostas em Bruxelas e Guadalajara, seguem depois para Toledo e Madrid e deverão estar em Guimarães em 2012) – é acrescentar novas leituras a esta história.

É por isso que a exposição se chama D. Afonso V e a Invenção da Glória. “Julga-se que terá sido após a [derrota na] batalha de Toro [1476], na altura em que D. Afonso V se retira para o convento do Varatojo, que encomenda este testamento político.” Um gesto que faz dele muito mais do que um rei cavaleiro preocupado com conquistas, mas um homem já preocupado com a imagem que deixaria para as gerações futuras, “orientando a visão que a posteridade terá dele”.

Para completar essa imagem o MNAA junta as (poucas) peças que, de uma forma ou outra, representam o rei: para além dos painéis, um retrato de figura equestre numa iluminura de um manuscrito do século XV pertencente à Biblioteca Nacional de França; outro retrato feito pelo cavaleiro Georg von Ehingen e que representa D. Afonso V com cerca de 25 anos (altura em que era, nas palavras de Von Ehingen, “um príncipe bonito e bem formado e o mais cristão, mais bélico e mais justo que alguma vez conheci”); uma chave de abóbada do Convento de São Francisco de Beja; e a cadeira vinda do Convento de Varatojo e que os frades sempre garantiram ter pertencido ao rei.

Para além das quatro tapeçarias, existem mais duas, também na posse da Colegiada de Pastrana. Resultam de uma encomenda separada que terá sido feita anos mais tarde e contam a campanha de Alcácer Ceguer, também realizada por D. Afonso V. “São muito menos conhecidas e nunca vieram a Portugal”, sublinha o director do MNAA. “Restaurá-las e trazê-las a Lisboa ainda com a memória desta exposição viva seria o fecho da abóbada deste processo.”

O objectivo é partilhado pelo presidente da Fundação Carlos de Amberes. Mas Miguel Angel Aguilar explica que o processo com a Colegiada nem sempre tem sido fácil. “Quando encontrámos as tapeçarias elas estavam em condições muito lamentáveis, metidas numa sacristia. Não penso que os proprietários [a Colegiada] tivessem consciência do seu valor e significado histórico.”

O restauro – que custou 330 mil euros – implicou uma desinsectização (nomeadamente para acabar com as traças) e neste momento a fundação mantém as tapeçarias a circular em exposições porque só permitirá o seu regresso à Colegiada quando esta tiver também desinfestado as instalações.

Ao ouvir isto, o director do MNAA abriu um sorriso: o principal museu nacional está completamente disponível para “fornecer asilo político às tapeçarias o tempo que for necessário”.

As fotos maiores foram retiradas do Sapo, as pequenas foram feitas com o telemóvel.

Musica Aeterna – Os 500 Anos da Fundação do Mosteiro da Madre de Deus

Esta página foi elaborada a partir do texto gentilmente cedido por João Chambers, que produziu o MUSICA AETERNA de 10 de Abril de 2010, dedicado a assinalar o celebrizado, no passado ano de 2009, quinto centenário da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, cuja exposição comemorativa, com o título “Casa Perfeitíssima”, terminou hoje, no Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa.

No dia 23 de Junho do remoto ano de 1509, e após um pequeno grupo de freiras, recém-chegado do Convento de Jesus de Setúbal, se haver instalado na sua nova residência, o conjunto de Nossa Senhora da Madre de Deus era abençoado pelo arcebispo de Lisboa, D. Martinho da Costa. As irmãs, todas elas Franciscanas Descalças da primeira Regra de Santa Clara, deviam a D. Leonor, soberana de Portugal, devota senhora, profundamente católica, que se entregava às emoções de uma espiritualidade cristológica, a compra de umas habitações, dotadas de horta e olival, à viúva do fidalgo Álvaro da Cunha, bem como a construção de um núcleo modesto para as poder albergar, tendo a respectiva igreja, um espaço fundamental para a comunidade, apenas mais tarde sido completada. Referida na “Crónica Seráfica” de Frei Jerónimo de Belém e num texto do padre Mestre Jorge de São Paulo como “Rainha Perfeitíssima”, fez-se rodear por uma elite intelectual onde pontificava Cataldo Sículo, poeta siciliano e um dos responsáveis pela introdução dos ideais humanistas em Portugal, deixando o seu nome também associado aos teatro de Gil Vicente e início da imprensa. O patrocínio régio a instituições semelhantes era, na época, habitual, embora, neste caso específico, a grandeza da atitude da mecenas se tenha sobreposto a uma mera questão de sensibilidade religiosa. A monarca, filha primogénita dos Duques de Beja, havia casado, ainda jovem, com um primo, o infante e futuro D. João II, e, num período de grande conflitualidade política, viu morrer às mãos do marido o próprio irmão e assistiu ao desenlace sangrento de uma conspiração contra o rei. Em 1491, uma queda de cavalo iria vitimar o príncipe D. Afonso, herdeiro jurado da coroa, e aquele, sem sucessor, tentou legitimar, contudo sem qualquer êxito, a bastardia do filho Jorge de Lencastre. Quatro anos mais tarde, após a sua morte, D. Manuel, irmão de D. Leonor, foi aclamado soberano, iniciando-se então uma época de esplendor inigualável marcada por um afluxo constante de produtos exóticos provenientes do Oriente, pela abertura de novas rotas à navegação, pela sistematização de outros saberes e por uma forma diferente de compreender o mundo.

Johann David Heinichen (1683-1729)
Concert Movement in C Minor Seibel 240 – Vivace · Musica Antiqua Köln · Reinhard Goebel

As orientações mecenáticas de D. Leonor espelham, na perfeição, inclusive nos dias de hoje, as perplexidades da sua época. Ainda presa ao universo das solidariedades medievais, constituiu a confraria de Nossa Senhora da Misericórdia, instituição pia que objectava o aumento da mendicidade urbana com a proverbial caritas cristã, fundou o primeiro grande hospital português nas Caldas de Óbidos, hoje “da Rainha”, e patrocinou ali a construção de uma nova igreja, integrada nas correntes mais estimulantes da arquitectura tardo-gótica, no mesmo gosto tradicionalista de apoio a pintores de dimensão regional e a fórmulas anacrónicas. Aberta às novidades da época, a monarca nunca deixou de mostrar, também, uma grande capacidade de aceitação de propostas mais evoluídas. Assim, apoiou oficinas de autores onde se notava já a influência de modelos plásticos proto-renascentistas, tais como as de Jorge Afonso, Cristóvão de Figueiredo ou do Mestre da Lourinhã, e adquiriu, na Europa setentrional e central, admiráveis pinturas sobre tábua onde, numa delas, se inclui ela própria em atitude de esclarecida encomendadora. Também o relicário em ouro e pedras preciosas deixado ao Convento da Madre de Deus, executado, talvez, na década de 1510, tornar-se-ia numa das mais extraordinárias peças da ourivesaria portuguesa. Concebido como uma estrutura arquitectónica em miniatura, no puro estilo da Renascença, reproduz, simbolicamente, a “Jesusalém Celeste” tal como era descrita numa obra impressa nessa mesma fase a mando de D. Leonor.

Jean Lhéritier (c. 1480-after 1552)
Nigra sum (Adapted from Song of Songs 1:2-5) · Stile Antico

O local onde ia crescendo o conjunto monástico da Madre de Deus constituía um dos lugares mais aprazíveis do termo oriental de Lisboa. Banhado pelo Tejo e povoado pelas hortas e pomares abastecedores da cidade, onde anteriormente existira um paço real que, ao tempo de D. Afonso V, se encontrava já em ruínas, era considerado como um dos destinos preferenciais de veraneio da corte e da nobreza. Com efeito, ainda no século XV uma antepassada de Afonso de Albuquerque havia-o escolhido para também aí fundar um templo de obediência franciscana.

Gregorian Chants: The Franciscan Monks of Assisi


Desde a sua localização, evocação e devoção, a história do Mosteiro da Madre de Deus, plena de objectos de culto, andou sempre associada a milagres e lendas, facto que, decerto, terá contribuído para a enorme afluência de fiéis ao local. Além disso, D. Leonor viria ali a professar, contudo sem obrigação de votos, circunstância que lhe permitiu não cumprir a clausura e levar uma vida comunitária até à morte, em 1525. Da primeira construção pouco ou nada subsistiu, embora o magnífico espólio que lhe legou se mantenha como um perfeito testemunho dos seus empenho, fervor e importante papel desempenhado como mecenas e protectora das artes e do pensamento. Na literatura impulsionou e subsidiou a publicação de alguns textos importantes, tais como a Vita Christi, “O Boosco Deleytoso”, “O Espelho de Cristina” e as criações de Gil Vicente, tendo inclusivamente o “Auto da Sibila Cassandra”, segundo reza a História, sido ali estreado, talvez em 1517, conforme a subsequente passagem alusiva:

“A obra seguinte foi representada a D. Leonor no mosteiro d’Enxobregas nas matinas do Natal. Trata-se nela da presunção da “Sibila Cassandra”, que, como por espírito profético, soubesse o mistério da encarnação, pressupôs ser ela a virgem de quem o senhor havia de nascer. E com esta opinião nunca quis casar.”.

Jacob Clemens non Papa (c. 1510 a 1515 – 1555 ou 1556)
Ego Flos Campi (Song of Songs) · Stile Antico


Para a decoração das construções por si fundadas e dos paços que habitou, D. Leonor iria encomendar, no país e no estrangeiro, obras reflectoras de um conhecimento profundo das realizações artísticas do seu tempo. Tornando-se, porém, padroeira no Convento da Madre de Deus, conferiu-lhe uma protecção real jamais perdida até 1834, ano da extinção das Ordens Religiosas, a qual, inclusive, se haveria de manter durante o domínio castelhano tal como demonstra a doação, pela Imperatriz Maria, irmã de Filipe II, de um fragmento do Santo Lenho. Apesar dos preceitos rigorosos de humildade, penitência e, sobretudo, de pobreza total que regem a irmandade, observados, de forma exemplar e segundo relatos de várias épocas, pelas religiosas de Xabregas, seria enriquecido não apenas com relíquias, obras de arte, graças e privilégios como, também, por ampliações e reformas. O templo e, neste caso, as congregações mendicantes não valorizavam as peças artísticas pelo seu sentido material mas sim como expressão do belo, isto é, a exaltação de Deus, pelo que as suas riquezas nunca haveriam de contrariar a mais importante regra franciscana – a de pobreza.

Nos dias de hoje pouco se sabe do núcleo primitivo do Mosteiro da Madre de Deus, conquanto numa representação pictórica, presumivelmente fidedigna, uma das tábuas do retábulo, alusiva à chegada das relíquias de Santa Auta, forneça elementos preciosos para a caracterização da frontaria coeva. Embora o episódio tenha ocorrido em 1517, na sua descrição dever-se-á descontar algumas imprecisões na concepção das arquitecturas visíveis ao nível das proporções relativas dos vários corpos e do exagero conferido aos pormenores decorativos. O edifício compunha-se de quatro conjuntos justapostos e escalonados – o anexo conventual, a igreja, o coro e a capela-mor – salientando-se, ainda, na fachada o elemento volumétrico mais destacado do complexo, ou seja, um artificioso portal de arcos ultrapassados flanqueado por dois botaréus torsos e um medalhão assente numa mísula. Estas peças cerâmicas, provenientes da oficina florentina da família Della Robbia, eram, na época, objecto de um florescente comércio e divulgavam, através de todo o continente europeu, uma versão mais acessível da escultura renascentista ultramontana.

Rainha Dona Leonor

Francesco da Milano


Em claro contraste com uma arquitectura prenunciadora do estilo manuelino, o significativo núcleo existente no Convento da Madre de Deus, composto por seis tondos e um frontal de sacrário dispersos pela fachada e pelas galerias do claustro, reflectia o gosto compósito de uma monarquia já atenta a géneros de produção artística de evidente modernidade. No edifício original, o remate da platibanda com elementos em flor-de-lis mais tarde desaparecidos acabariam por ser retomados através de uma reintegração oitocentista interessada, sobretudo, na recuperação dos seus valores “exóticos”. Na distribuição actual dos espaços será, pois, difícil entrever ali quaisquer reminiscências das construções contemporâneas de D. Leonor:

– para além da orientação da implantação primitiva, não é possível reconhecer, com total certeza, vestígios materiais anteriores às reformas da segunda metade do século XVI;
– descontando alterações pontuais, e recorrente em algumas representações da fachada sul, a torre sineira poderá ser datada do mesmo período;
– o moderno sub-coro, nos dias de hoje tornado no acesso do claustro grande à igreja, e uma sala adjacente, denominada “D. Manuel”, serão, porventura, outras das mais antigas estruturas remanescentes.

Além disso, no claustro pequeno, também conhecido por “claustrim”, e na “Sala Árabe”, ou de D. Leonor, revivem-se ainda os tempos da fundação, pois, embora o segundo piso seja um acrescento oitocentista, pode respirar-se, sublinhada pela singeleza dos alçados, uma singular atmosfera de profundo recolhimento.

Guillaume Dufay (1397-1474)
O gemma, lux et speculum – Sacer pastor Barensium (Franco-Flemish Polyphony) · Paul Van Nevel · Huelgas-Ensemble


O conjunto arquitectónico da Madre de Deus deixado por D. Leonor à data da morte era, verdadeiramente, exíguo. Disso mesmo se queixavam as próprias freiras que evocavam, reconhecidas, não a origem prima da residência mas antes a grande campanha de remodelação empreendida por D. João III, a qual, em vários aspectos, definia a respectiva refundação. Na verdade, o pretexto imediato da intervenção régia havia sido o de salvaguardar o edifício do assalto das marés, as quais incomodavam os fiéis e abalavam as suas estruturas. A regularização da margem do Tejo naquela zona e a construção de elementos de protecção encontram-se datadas de 1525, conquanto o desejo de se construir um cais constasse de um decreto de D. Sebastião de cerca de quatro décadas mais tarde. À funcionalidade evidente de embarcadouros que marcavam, de forma indelével, a paisagem da Lisboa oriental, acrescia ainda uma utilização de apoio às recriações fluviais da família real e da aristocracia, certamente mais comuns após a implantação do cenóbio e seus acrescentos. Acautelada a segurança do edifício, D. João III podia, enfim, ampliá-lo, identificando-se o esforço de renovação arquitectónica com o sentido da política cultural de ruptura com o passado e de uma aproximação aos modelos do humanismo e do classicismo. Estes, assimilavam directamente na Península Itálica através de numerosos artistas que, à custa da fazenda real, ali procuraram vestígios da Antiguidade e o contacto com um ambiente intelectual fervilhante. A exacta dimensão da aspiração real é, desde logo, sugerida pela escolha de Diogo de Torralva, um arquitecto ligado aos grandes estaleiros do Mosteiro dos Jerónimos, onde, em 1551, se mantinha como “mestre das obras”, e ainda com a actividade conhecida no âmbito da engenharia militar e na participação dos trabalhos da fortificação de Mazagão, actual El Jadida, no sudoeste de Marrocos. Iniciada seis anos mais tarde, a realização maior viria, no entanto, a ser a do claustro joanino do Convento de Cristo em Tomar, obra-prima que traía o bom conhecimento da arquitectura transalpina e dos modelos propostos pela tratadística de Sebastiano Serlio e de Andrea Palladio, encontrando-se a ligação documentada desde essa altura até ao final da década.

As obras levadas a cabo na Madre de Deus, que permitiram o aumento substancial da comunidade monástica, centraram-se na regularização e ampliação do templo e na construção de um novo claustro, facto representador, para além de uma tentativa de imposição de uma articulação mais funcional a um conjunto descontínuo e heterogéneo, de um esforço na tentativa de inspirar uma monumentalidade a um espaço de tão alta protecção. O claustro, de grande limpidez estrutural, é dotado de cinco tramos em cada alçado ritmados por possante contrafortagem: se, no piso térreo, os vãos são resolvidos por arcos de volta inteira, no superior, num sistema pouco comum na arquitectura renascentista portuguesa, corre uma galeria arquitravada assente em finos colunelos. A direcção do já mencionado Torralva não iria ser exercida de forma continuada e atenta, compreendendo-se, assim, a persistência de pormenores tardo-góticos no desenho de alguns dos colunelos de ambos os pisos e as diferenças de composição, bastante mais pobres, que apresenta em relação a outras obras de sua autoria.

Francisco Antonio de Almeida


A estrutura da Igreja da Madre de Deus foi, talvez, construída ao tempo de D. João III, tendo-se rasgado uma entrada lateral tal como convinha a uma casa religiosa feminina constituída, apenas, por um portal de desenho moderno ladeado por duas colunas e uma tabela de remate sobrepujada por frontão triangular. Além disso, descontando as pequenas intervenções de manutenção que um edifício desta dimensão requeria, atravessou, quase incólume, a totalidade do século XVII. As fabulosas riquezas provenientes do Brasil e o espírito do magnífico reinado de D. João V chegaram ali ao mesmo tempo que a muitos outros templos de Lisboa, pejando-o de talha dourada, azulejos, mármores polícromos e móveis sacros em raríssimas madeiras provenientes das mais recentes conquistas. Em 1746 reformulou-se a sacristia, trabalho devido ao mestre carpinteiro António da Silva e ao entalhador Félix Adauto da Cunha, que compreendeu a execução dos arcazes, das portas e das molduras das telas do pintor André Gonçalves. Além da abertura de uma cúpula sobre o cruzeiro e do enriquecimento interior verificados ao longo de todo o século XVIII, a capela-mor recebeu, após o terramoto de 1755, um retábulo de expressão já em estilo rococó animado por um trono de grandes dimensões. Na igreja, muito depurada na sua concepção estrutural, o fausto decorativo alcançava, não apenas através das formas de arte presentes como pelos materiais empregados na conjugação e na harmonia, uma exuberância de grande efeito visual. Esta solução de unidade do azulejo e da talha utilizada no mesmo repertório ornamental, assim como da representação pictórica que, além do suporte, possui como fonte a gravura, permitiu dinamizar o interior de muitos edifícios, principalmente religiosos, cumprindo assim um dos seus principais objectivos, isto é, o de persuadir o observador. A decoração dos espaços ultrapassava a função puramente estética e a qualidade artística das obras subordinava-se, em geral, a um programa orientado de divulgação de uma fé revivificada. A arte era, pois, um meio devocional que devia ensinar e comover os fiéis e transmitir a ostentação real e a teatralização dramática do dogma, ou seja, as expressões típicas da sociedade de então.

Igreja da Madre de Deus

De acordo com a doutrina de grande devoção à Virgem, segundo a evocação do Mosteiro da Madre de Deus e da ordem religiosa nele presente, as narrativas dos Evangelhos, o exemplo moralizador da vida e do martírio dos santos e a ausência ou alteração de algumas obras não impediram o entendimento do seu programa iconográfico. Concebida para ser o palácio de Deus, a igreja possui três núcleos – a nave, o cruzeiro e a capela-mor – que definem a representação do programa litúrgico expressado através da arte e correspondem ao espaço reservado a cada um dos níveis da assembleia, estabelecendo, assim, uma hierarquia onde a nave está reservada aos fiéis e a capela-mor, num plano mais elevado, ao clero. Um complexo programa de devoção e exaltação a Maria, genetriz de Jesus, que, a partir do Concílio de Éfeso de 431, foi proclamada Mãe de Deus, é desenvolvido neste templo da sua evocação. Aliás, na história cristã concedeu-se sempre um lugar muito especial à Virgem, a quem são dedicados muitíssimos outros, facto que levou a Contra-Reforma a reforçá-la como imagem da vitória sobre as heresias. Às ordens monásticas coube, então, a incumbência de exaltar esta nova religiosidade, tendo os franciscanos, pelo seu ideal apostólico, desempenado um papel fundamental na difusão do respectivo culto. Do revestimento azulejar colocado na nave que divide a igreja do coro-baixo salienta-se o painel “Moisés e a Sarça Ardente” da autoria do pintor holandês Willem van der Kloet, cujo tema, numa mensagem de concordância do Antigo com o Novo Testamento, profetiza a Virgem a conceber e a parir sem pecado. Os restantes painéis, representando eremitas e cenas comuns à ordem, lembram a intenção deste espaço, isto é, a meditação, a clausura e o silêncio. Nos rodapés, a figuração dos quatro elementos da Natureza e dos cinco sentidos remete para o Homem que, ao longo das suas idades, simbolizadas pelos elementos naturais, pode, através daqueles últimos, elevar-se até ao Altíssimo se seguir sempre o exemplo de Cristo.

São Francisco entregando os Estatutos da Ordem a Santa Clara

Pintura e talha preenchem, num nível superior, as paredes laterais da nave da Igreja da Madre de Deus, delimitando a estrutura através de planos intrinsecamente relacionados com a importância artística em que, na época, se dividiam as Artes. Em dois registos, e num extenso programa didáctico que se lê no seu todo pelo respectivo encadeamento, são narrados episódios das vidas de São Francisco e de Santa Clara. Servindo de guias, ambos os fundadores desta ordem lembram aos fiéis o modelo divino, cujas telas são exemplo perfeito do culto militante deste período e onde persistem temas já antes usados ao serviço da fé embora desenvolvidos por uma nova dinâmica dos ciclos narrativos. Em contacto directo com os crentes, e tal como os religiosos que, à semelhança dos Apóstolos, levavam os Evangelhos às populações, o ciclo de Francisco encontra-se colocado no primeiro registo, enquanto, no nível superior, o de Clara, em ligação directa com o coro, onde as freiras ouviam missa e meditavam, remete para a clausura feminina. A ampliação do programa iconográfico às coberturas, praticamente circunscrito à Vida da Virgem e à Paixão de Cristo, atingiu o apogeu na primeira metade do século XVIII. Em homenagem à mais venerada intercessora dos santos e dos homens, o tecto e o arco triunfal do templo exaltam Maria, Rainha dos Anjos, sendo este último reservado aos temas celestiais – Assunção, Glorificação e Coroação – e possuindo um forte sentido ideológico com a representação desta última encimada pelas armas reais portuguesas. Ali, a hierarquização e a mensagem ultrapassam o sentido religioso numa demonstração de emanação directa e divina do poder régio.

Heinrich Isaac

A conjugação do azulejo com a talha dourada existente na Igreja da Madre de Deus, um típico material reflector de luz, proporciona o efeito ilusório de aumento do espaço. Para além da função de emolduramento da pintura pontuam importantes elementos arquitectónicos como cimalhas, intradorso dos arcos e fustes das pilastras, evidenciando expressividade e autonomia e atingindo, nas cantoneiras, um valor próprio da escultura que acentua a simbólica das armas reais colocadas no fecho do arco triunfal. Os altares laterais, um com as relíquias de Santa Auta, oferta de Maximiliano I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico e primo de D. Leonor, e outro com a Sagrada Família, apesar de não possuírem o esplendor de exemplares semelhantes, assumem uma função ilusória, ou seja, de pálios de onde pendem cortinas de ouro trabalhadas num segundo plano. A capela-mor, área mais sagrada do templo e, por isso mesmo, apenas reservada às altas hierarquias da comunidade, reflecte, pela existência da tribuna, a distinção que a família real, segundo a tradição assídua a aqui ouvir missa, sempre concedeu ao local. O altar-mor, reconstruído após o terramoto de 1755, corresponde a um outro género de gosto pela estilização e pelo requinte, quase gráficos, da sua composição e exprime uma tímida aproximação à estética de finais de setecentos. O coroamento do respectivo frontão, com as esculturas da Fé e da Esperança, acentua, através da ausência de uma imagem da Caridade, isto é, a maior das três Virtudes Teologais, a sua presença espiritual como elemento fundamental da igreja. A imagem do altar é de Nossa Senhora dos Prazeres, escultura de porte, policromada, cuja presença é magnificamente evidenciada pelo refulgir dourado da talha que a enquadra. Esta evocação da Virgem representa a alegria da Mãe ao ver o Filho de Deus ressuscitado, circunstância que explica a escolha para oráculo numa mensagem de esperança aos fiéis.

Georg Philipp Telemann

Situada já na zona de clausura, parte da primitiva construção do Convento da Madre de Deus é o actual coro-baixo, o qual, após as já mencionadas obras ao tempo de D. João III em meados do século XVI, passou a sala do capítulo, onde se efectuavam as reuniões solenes, e foi utilizado como capela mortuária. Sempre contíguo ao templo, o claustro mantém-se como um lugar elementar da vida monástica, através do qual se ligam, em simultâneo, todos os espaços e dependências e se pratica a contemplação e a meditação necessárias à comunidade. Ali, a fonte é a imagem da água que brotava no Paraíso junto da Árvore da Vida e corria nas quatro direcções cardeais simbolizadas por alamedas de vegetação. O movimento perpétuo daquele elemento representa, na linguagem sagrada dos cenóbios, a certeza da vida eterna garantida pela purificação do baptismo. No centro, a fonte, de feição tardo-medieval, tem a particularidade de possuir seis pequenos atlantes suportando a bacia, cujas filactérias, com caracteres góticos, contêm as seguintes inscrições:

– “Ajuda-me!”;
– “O melhor que posso.”;
– “E tu que não ajudas?”;
– “Não posso mais!”;
– “Muito pesado.”;
– “Deus nos ajude.”.

No extremo da galeria poente, junto ao coro-baixo, em campa rasa segundo o espírito da Devotio Moderna, um movimento de renovação da vida espiritual, originário dos Países Baixos, que advogava uma relação mais directa com Deus, três lápides recordam aos visitantes as presenças de Soror Coleta, a primeira abadessa do Mosteiro, de D. Isabel, irmã da soberana, e da própria D. Leonor.

Heinrich Isaac (ca. 1450 – 1517)
Missa Virgo prudentissima: Credo · Ensemble Gilles Binchois · Dominique Vellard

O coro das igrejas, local onde os religiosos assistem e participam na liturgia, insere-se, de um modo geral, na capela-mor. Em certos casos, como nos conventos femininos de clausura, esteve sempre separado, com maior ou menor rigor, do mundo exterior, originando o denominado “coro alto” por se encontrar, num plano mais elevado, ao fundo da nave. A clausura, não permitindo a entrada no templo, alarga a sua função para além da vida litúrgica de contemplação e meditação a que usualmente está destinada, ou seja, à celebração da missa conventual através da presença do Tabernáculo do Santíssimo Sacramento. Porém, o Mosteiro da Madre de Deus inseriu-se no espírito que, na primeira metade de setecentos e através da redecoração e da utilização dos mesmos materiais – talha, azulejo e pintura –, presidiu a uma transformação barroca, criando um espaço de verdadeira eleição. Foram, pois, conjugados e enquadrados num preenchimento meticuloso revelador de uma grande qualidade artística e responderam ao objectivo que já não o de divulgação do dogma da Igreja mas da consolidação da edificação moral através do estímulo devoto.

Heinrich Isaac – Missa paschalis: Kyrie · Ensemble Officium

O programa iconográfico, estabelecido, no Convento da Madre de Deus, sem a constante função didáctica, visava uma acção moralizadora destinada a assembleias que entendiam a mensagem das Escrituras e procuravam o caminho para a Santidade através de uma vida activa, contemplativa e, sobretudo, de penitência. Grande parte do seu quotidiano era dedicada à meditação e, segundo testemunhos das próprias enclausuradas, relatava as flagelações a que se sujeitavam, complementando-se, tudo isto, com a presença de imagens destinadas à consolidação do caminho místico até ao Criador. O facto, não muito comum, de funcionar simultaneamente como Casa do Tesouro, isto é, o local destinado a guardar as relíquias, o bem mais precioso do culto, aumentou, por um lado, a carga moral, e, por outro, engrandeceu a sua sumptuária. Os relicários, executados num qualificado trabalho de talha dourada, integram, em todo o esplendor, o vasto conjunto de restos mortais de santos e mártires, em grande parte de oferta régia, que acabaram por torná-lo famoso. No imponente tabernáculo inscrevem-se os símbolos de autoridade, de novo numa nítida estruturação hierárquica onde a expressão do poder temporal é feita através do escudo real sobreposto pelo Santíssimo Sacramento e encimado pelo Todo-Poderoso. No coroamento, tal como no altar-mor, surgem as Virtudes Teologais, Esperança e Caridade ladeando a Fé que se encontra num plano mais elevado. Junto aos altares podem ver-se os retratos de D. João III e de D. Catarina com os seus santos protectores que, segundo o cronista Frei Jerónimo de Belém, foram encomendados pelos próprios monarcas para ali serem colocados. Considerados segundos fundadores do cenóbio e representados como orantes, descobriram neste espaço um local privilegiado pela proximidade com o tabernáculo e pela evocação permanente da sua memória junto das religiosas. Estes quadros, datados de meados do século XVI e de autoria atribuída a Cristóvão de Morais, tiveram como modelo a obra de Anthonius Moro, pintor da corte espanhola que, cerca de 1551, laborou em Portugal. As janelas, em plano muito elevado, reforçam a simbologia do conjunto através de um revestimento lateral com oito painéis de azulejos, onde as heroínas bíblicas do Antigo Testamento são representadas em imagens simbólicas das qualidades da Virgem e, numa integração perfeita, redobrando o efeito decorativo e celestial, reflectem a luz solar.

Heinrich Isaac – Missa paschalis: Credo · Ensemble Officium

As consequências da extinção das ordens religiosas em 1834 e da venda dos bens nacionais abriram, na história do Mosteiro da Madre de Deus, um novo capítulo. Com efeito, em 1869, uma equipa, coordenada pelo arquitecto e erudito José Maria Nepomuceno, apresentou um projecto para a reconversão do conjunto monástico em edifício afecto ao asilo D. Maria Pia, incluindo um plano para a instalação de um pequeno espaço museológico. A intervenção por ele iniciada e continuada por diversos técnicos do Ministério das Obras Públicas, entre os quais avultou Francisco Liberato Telles, alterou, de modo irreversível, toda a parte conventual, adaptando-a a novas funções e utilizando, nas zonas nobres, um critério de recuperação dos supostos valores originais. A atitude historicista dos técnicos e responsáveis entende-se no âmbito de uma cultura tardo-romântica que não apenas aspirava à unificação plástica do conjunto – ora eliminando descontinuidades construtivas, ora impondo ritmos sequenciais à fenestração – mas pretendia, também, repor a verdade do edifício como se sobre ele não pesassem as alterações inevitáveis de quatro séculos de história. Segundo testemunhos da época foi o portal sul desentaipado ou, mais certamente, reconstruído com base nas já referidas tábuas de Santa Auta, inventando-se na fachada, além disso, vãos de molduração neo-manuelina ao mesmo tempo que lhe era acrescentada uma platibanda bastante recortada e gárgulas fantasiadas de sabor medieval. Porém, o pormenor mais curioso daquela reforma mostra os limites da arqueologia empírica dos reconstrutores oitocentistas, pois, num dos capitéis dos colunelos do piso superior do claustrim, o canteiro, dividido talvez entre o fascínio da técnica e da velocidade e a suspensão do tempo que o espaço evoca, não se olvidou de gravar a imagem de um comboio a vapor. Em pleno século XX, sobretudo na década de 50, a arquitectura deste eclético local sofreu novas alterações com a preparação da exposição comemorativa do quinto centenário do nascimento de D. Leonor; na de 60, através da salutar iniciativa de João Miguel dos Santos Simões, estruturaram-se as primeiras salas da exposição permanente do anexo de azulejaria e cerâmica do Museu Nacional de Arte Antiga; na de 80, com a “XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura”, foi-lhe conferido o enquadramento paisagístico da traça do arquitecto Francisco Caldeira Cabral e a instalação definitiva e autónoma como Museu Nacional do Azulejo. Por fim, na de 90, aquando da eleição de Lisboa como “Capital Europeia da Cultura”, foram efectuados arranjos pontuais de adaptação do edifício a novas necessidades museológicas que, no entanto, não deixaram de manter e valorizar uma linha de leitura da sua história global.

Heinrich Isaac · Missa Paschale: II. Gloria · Hilliard Ensemble

A Invenção da Glória – D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana

Museu Nacional de Arte Antiga – 12 Junho – 12 Setembro de 2010

A exposição ‘A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana’ reúne pela primeira vez em Portugal os quatro monumentais panos, tecidos em Tournai por encomenda de D. Afonso V, conservados na Colegiada de Pastrana desde o século XVI e recém-restaurados sob o patrocínio da Fundação Carlos de Amberes. Peças de extraordinária monumentalidade e absolutamente únicas em termos da produção borgonhesa, relatando as conquistas de Arzila e Tânger, a sua encomenda e produção — ainda envolta em sombras — enquadra-se num programa mais vasto, de construção mítica da História, que o conjunto de obras em seu redor agora reunidas procura enquadrar e problematizar. Via.

Relacionado: Um tesouro perdido no Museu de Arte Antiga, por MARIA DE LURDES VALE, no DN

A execução de Lady Jane Grey

Os últimos momentos de Jane Grey, bisneta de Henrique VII, proclamada Rainha de Inglaterra após a morte de Eduardo VI, tal como ela, protestante. Vítima de uma conspiração dos partidários de Mary Tudor, a filha católica de Henrique VIII, foi condenada à morte na Torre de Londres, por alta traição.
Pode ser vista até domingo na The National Gallery, Londres.

The Execution of Lady Jane Grey - Paul Delaroche, 1833

Bach e o legado de Lutero

Descobri mais um magnífico documentário produzido pela BBC-Four, no qual o actor Simon Russell Beale continua a viagem pelo florescimento da música sacra ocidental através das interpretações do Ensemble The Sixteen, dirigido por Harry Christophers.

O documentário encontra-se disponível na página de jormundgard no YouTube:
Parte 1Parte 2Parte 3Parte 4Parte 5Parte 6

Martinho Lutero teve um impacto profundo no desenvolvimento da música sacra, pelo contributo na redefinição das práticas do canto congregacional e do órgão nos serviços religiosos; reformas que, de tal forma influenciaram a música durante os 150 anos seguintes , viriam a inspirar JS Bach, semana após semana, mês após mês, a escrever mais de mil peças musicais, das quais cerca de dois terços produzidas para a Igreja Luterana de Thomaskirche, na cidade alemã de Leipzig, legado que inclui uma das mais sublimes peças da música do ocidente, “Jesu, Joy of Man’s Desiring”.

150º Aniversário do “Tratado de Paz entre Portugal e o Japão”

Após prolongada presença portuguesa, inicialmente no sul e centro do Japão (de 1543 a 1639), as relações diplomáticas entre os dois países foram formalmente estabelecidas pelo Tratado de Paz, Amizade e Comércio, assinado em 1860, pelo Rei D. Pedro V e o Imperador do Japão. Embaixada de Portugal no Japão

A partir de hoje e para ir acompanhando, O Vento nas Velas colocará em rede as memórias dos aventureiros e dos missionários de há quatro séculos no país do Sol Nascente.

Em Outubro de 2010, o CHAM promove o Colóquio As relações luso-nipónicas (1860-2010).

Entre os muitos tesouros que o Museu Nacional de Arte Antiga encerra, encontra-se uma rara série de biombos Nambam (que narram as actividades religiosas e comerciais dos portugueses no Japão) e um frasco, ambos pertencentes ao Período Momoyama, finais do século XVI.


Musica Aeterna – Casa Perfeitíssima

Retábulo de Santa Auta | Oficina de Lisboa, intérprete desconhecido

Casa Perfeitíssimaos 500 anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus por D. Leonor, referida, na Crónica Seráfica de Frei Jerónimo de Belém e num texto do padre Mestre Jorge de São Paulo, como Rainha Perfeitíssima, cuja exposição se encontra patente até amanhã, dia 11, no Museu Nacional do Azulejo, ilustrados, para além de Canto Gregoriano de Monges Franciscanos e extraído do Canto da Sibila Castelhana, por obras de Pedro de Escobar, Jean Lhéritier, Francesco da Milano, Umberto Naich, Duarte Lobo, Francisco António de Almeida, Estêvão de Brito, Georg Philipp Telemann, Heinrich Isaac, Diogo Dias Melgás, Cristóbal de Morales, Giorgio Mainerio e de um autor anónimo. João Chambers