Musica Aeterna – Os 500 Anos da Fundação do Mosteiro da Madre de Deus
Esta página foi elaborada a partir do texto gentilmente cedido por João Chambers, que produziu o MUSICA AETERNA de 10 de Abril de 2010, dedicado a assinalar o celebrizado, no passado ano de 2009, quinto centenário da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, cuja exposição comemorativa, com o título “Casa Perfeitíssima”, terminou hoje, no Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa.
No dia 23 de Junho do remoto ano de 1509, e após um pequeno grupo de freiras, recém-chegado do Convento de Jesus de Setúbal, se haver instalado na sua nova residência, o conjunto de Nossa Senhora da Madre de Deus era abençoado pelo arcebispo de Lisboa, D. Martinho da Costa. As irmãs, todas elas Franciscanas Descalças da primeira Regra de Santa Clara, deviam a D. Leonor, soberana de Portugal, devota senhora, profundamente católica, que se entregava às emoções de uma espiritualidade cristológica, a compra de umas habitações, dotadas de horta e olival, à viúva do fidalgo Álvaro da Cunha, bem como a construção de um núcleo modesto para as poder albergar, tendo a respectiva igreja, um espaço fundamental para a comunidade, apenas mais tarde sido completada. Referida na “Crónica Seráfica” de Frei Jerónimo de Belém e num texto do padre Mestre Jorge de São Paulo como “Rainha Perfeitíssima”, fez-se rodear por uma elite intelectual onde pontificava Cataldo Sículo, poeta siciliano e um dos responsáveis pela introdução dos ideais humanistas em Portugal, deixando o seu nome também associado aos teatro de Gil Vicente e início da imprensa. O patrocínio régio a instituições semelhantes era, na época, habitual, embora, neste caso específico, a grandeza da atitude da mecenas se tenha sobreposto a uma mera questão de sensibilidade religiosa. A monarca, filha primogénita dos Duques de Beja, havia casado, ainda jovem, com um primo, o infante e futuro D. João II, e, num período de grande conflitualidade política, viu morrer às mãos do marido o próprio irmão e assistiu ao desenlace sangrento de uma conspiração contra o rei. Em 1491, uma queda de cavalo iria vitimar o príncipe D. Afonso, herdeiro jurado da coroa, e aquele, sem sucessor, tentou legitimar, contudo sem qualquer êxito, a bastardia do filho Jorge de Lencastre. Quatro anos mais tarde, após a sua morte, D. Manuel, irmão de D. Leonor, foi aclamado soberano, iniciando-se então uma época de esplendor inigualável marcada por um afluxo constante de produtos exóticos provenientes do Oriente, pela abertura de novas rotas à navegação, pela sistematização de outros saberes e por uma forma diferente de compreender o mundo.
Johann David Heinichen (1683-1729)
Concerto in fa maggiore: Vivace – Adagio – un poco allegro – Allegro
Musica Antiqua Köln on authentic instruments | dir. Reinhard Goebel
As orientações mecenáticas de D. Leonor espelham, na perfeição, inclusive nos dias de hoje, as perplexidades da sua época. Ainda presa ao universo das solidariedades medievais, constituiu a confraria de Nossa Senhora da Misericórdia, instituição pia que objectava o aumento da mendicidade urbana com a proverbial caritas cristã, fundou o primeiro grande hospital português nas Caldas de Óbidos, hoje “da Rainha”, e patrocinou ali a construção de uma nova igreja, integrada nas correntes mais estimulantes da arquitectura tardo-gótica, no mesmo gosto tradicionalista de apoio a pintores de dimensão regional e a fórmulas anacrónicas. Aberta às novidades da época, a monarca nunca deixou de mostrar, também, uma grande capacidade de aceitação de propostas mais evoluídas. Assim, apoiou oficinas de autores onde se notava já a influência de modelos plásticos proto-renascentistas, tais como as de Jorge Afonso, Cristóvão de Figueiredo ou do Mestre da Lourinhã, e adquiriu, na Europa setentrional e central, admiráveis pinturas sobre tábua onde, numa delas, se inclui ela própria em atitude de esclarecida encomendadora. Também o relicário em ouro e pedras preciosas deixado ao Convento da Madre de Deus, executado, talvez, na década de 1510, tornar-se-ia numa das mais extraordinárias peças da ourivesaria portuguesa. Concebido como uma estrutura arquitectónica em miniatura, no puro estilo da Renascença, reproduz, simbolicamente, a “Jesusalém Celeste” tal como era descrita numa obra impressa nessa mesma fase a mando de D. Leonor.
Jean Lhéritier (c. 1480-after 1552) – Nigra sum (Adapted from Song of Songs 1:2-5)
O local onde ia crescendo o conjunto monástico da Madre de Deus constituía um dos lugares mais aprazíveis do termo oriental de Lisboa. Banhado pelo Tejo e povoado pelas hortas e pomares abastecedores da cidade, onde anteriormente existira um paço real que, ao tempo de D. Afonso V, se encontrava já em ruínas, era considerado como um dos destinos preferenciais de veraneio da corte e da nobreza. Com efeito, ainda no século XV uma antepassada de Afonso de Albuquerque havia-o escolhido para também aí fundar um templo de obediência franciscana.
Gregorian Chants: The Franciscan Monks of Assisi
Desde a sua localização, evocação e devoção, a história do Mosteiro da Madre de Deus, plena de objectos de culto, andou sempre associada a milagres e lendas, facto que, decerto, terá contribuído para a enorme afluência de fiéis ao local. Além disso, D. Leonor viria ali a professar, contudo sem obrigação de votos, circunstância que lhe permitiu não cumprir a clausura e levar uma vida comunitária até à morte, em 1525. Da primeira construção pouco ou nada subsistiu, embora o magnífico espólio que lhe legou se mantenha como um perfeito testemunho dos seus empenho, fervor e importante papel desempenhado como mecenas e protectora das artes e do pensamento. Na literatura impulsionou e subsidiou a publicação de alguns textos importantes, tais como a Vita Christi, “O Boosco Deleytoso”, “O Espelho de Cristina” e as criações de Gil Vicente, tendo inclusivamente o “Auto da Sibila Cassandra”, segundo reza a História, sido ali estreado, talvez em 1517, conforme a subsequente passagem alusiva:
“A obra seguinte foi representada a D. Leonor no mosteiro d’Enxobregas nas matinas do Natal. Trata-se nela da presunção da “Sibila Cassandra”, que, como por espírito profético, soubesse o mistério da encarnação, pressupôs ser ela a virgem de quem o senhor havia de nascer. E com esta opinião nunca quis casar.”.
Jacob Clemens non Papa
Para a decoração das construções por si fundadas e dos paços que habitou, D. Leonor iria encomendar, no país e no estrangeiro, obras reflectoras de um conhecimento profundo das realizações artísticas do seu tempo. Tornando-se, porém, padroeira no Convento da Madre de Deus, conferiu-lhe uma protecção real jamais perdida até 1834, ano da extinção das Ordens Religiosas, a qual, inclusive, se haveria de manter durante o domínio castelhano tal como demonstra a doação, pela Imperatriz Maria, irmã de Filipe II, de um fragmento do Santo Lenho. Apesar dos preceitos rigorosos de humildade, penitência e, sobretudo, de pobreza total que regem a irmandade, observados, de forma exemplar e segundo relatos de várias épocas, pelas religiosas de Xabregas, seria enriquecido não apenas com relíquias, obras de arte, graças e privilégios como, também, por ampliações e reformas. O templo e, neste caso, as congregações mendicantes não valorizavam as peças artísticas pelo seu sentido material mas sim como expressão do belo, isto é, a exaltação de Deus, pelo que as suas riquezas nunca haveriam de contrariar a mais importante regra franciscana – a de pobreza.
Nos dias de hoje pouco se sabe do núcleo primitivo do Mosteiro da Madre de Deus, conquanto numa representação pictórica, presumivelmente fidedigna, uma das tábuas do retábulo, alusiva à chegada das relíquias de Santa Auta, forneça elementos preciosos para a caracterização da frontaria coeva. Embora o episódio tenha ocorrido em 1517, na sua descrição dever-se-á descontar algumas imprecisões na concepção das arquitecturas visíveis ao nível das proporções relativas dos vários corpos e do exagero conferido aos pormenores decorativos. O edifício compunha-se de quatro conjuntos justapostos e escalonados – o anexo conventual, a igreja, o coro e a capela-mor – salientando-se, ainda, na fachada o elemento volumétrico mais destacado do complexo, ou seja, um artificioso portal de arcos ultrapassados flanqueado por dois botaréus torsos e um medalhão assente numa mísula. Estas peças cerâmicas, provenientes da oficina florentina da família Della Robbia, eram, na época, objecto de um florescente comércio e divulgavam, através de todo o continente europeu, uma versão mais acessível da escultura renascentista ultramontana.
Francesco da Milano
Em claro contraste com uma arquitectura prenunciadora do estilo manuelino, o significativo núcleo existente no Convento da Madre de Deus, composto por seis tondos e um frontal de sacrário dispersos pela fachada e pelas galerias do claustro, reflectia o gosto compósito de uma monarquia já atenta a géneros de produção artística de evidente modernidade. No edifício original, o remate da platibanda com elementos em flor-de-lis mais tarde desaparecidos acabariam por ser retomados através de uma reintegração oitocentista interessada, sobretudo, na recuperação dos seus valores “exóticos”. Na distribuição actual dos espaços será, pois, difícil entrever ali quaisquer reminiscências das construções contemporâneas de D. Leonor:
– para além da orientação da implantação primitiva, não é possível reconhecer, com total certeza, vestígios materiais anteriores às reformas da segunda metade do século XVI;
– descontando alterações pontuais, e recorrente em algumas representações da fachada sul, a torre sineira poderá ser datada do mesmo período;
– o moderno sub-coro, nos dias de hoje tornado no acesso do claustro grande à igreja, e uma sala adjacente, denominada “D. Manuel”, serão, porventura, outras das mais antigas estruturas remanescentes.
Além disso, no claustro pequeno, também conhecido por “claustrim”, e na “Sala Árabe”, ou de D. Leonor, revivem-se ainda os tempos da fundação, pois, embora o segundo piso seja um acrescento oitocentista, pode respirar-se, sublinhada pela singeleza dos alçados, uma singular atmosfera de profundo recolhimento.
Guillaume Dufay
O conjunto arquitectónico da Madre de Deus deixado por D. Leonor à data da morte era, verdadeiramente, exíguo. Disso mesmo se queixavam as próprias freiras que evocavam, reconhecidas, não a origem prima da residência mas antes a grande campanha de remodelação empreendida por D. João III, a qual, em vários aspectos, definia a respectiva refundação. Na verdade, o pretexto imediato da intervenção régia havia sido o de salvaguardar o edifício do assalto das marés, as quais incomodavam os fiéis e abalavam as suas estruturas. A regularização da margem do Tejo naquela zona e a construção de elementos de protecção encontram-se datadas de 1525, conquanto o desejo de se construir um cais constasse de um decreto de D. Sebastião de cerca de quatro décadas mais tarde. À funcionalidade evidente de embarcadouros que marcavam, de forma indelével, a paisagem da Lisboa oriental, acrescia ainda uma utilização de apoio às recriações fluviais da família real e da aristocracia, certamente mais comuns após a implantação do cenóbio e seus acrescentos. Acautelada a segurança do edifício, D. João III podia, enfim, ampliá-lo, identificando-se o esforço de renovação arquitectónica com o sentido da política cultural de ruptura com o passado e de uma aproximação aos modelos do humanismo e do classicismo. Estes, assimilavam directamente na Península Itálica através de numerosos artistas que, à custa da fazenda real, ali procuraram vestígios da Antiguidade e o contacto com um ambiente intelectual fervilhante. A exacta dimensão da aspiração real é, desde logo, sugerida pela escolha de Diogo de Torralva, um arquitecto ligado aos grandes estaleiros do Mosteiro dos Jerónimos, onde, em 1551, se mantinha como “mestre das obras”, e ainda com a actividade conhecida no âmbito da engenharia militar e na participação dos trabalhos da fortificação de Mazagão, actual El Jadida, no sudoeste de Marrocos. Iniciada seis anos mais tarde, a realização maior viria, no entanto, a ser a do claustro joanino do Convento de Cristo em Tomar, obra-prima que traía o bom conhecimento da arquitectura transalpina e dos modelos propostos pela tratadística de Sebastiano Serlio e de Andrea Palladio, encontrando-se a ligação documentada desde essa altura até ao final da década.
As obras levadas a cabo na Madre de Deus, que permitiram o aumento substancial da comunidade monástica, centraram-se na regularização e ampliação do templo e na construção de um novo claustro, facto representador, para além de uma tentativa de imposição de uma articulação mais funcional a um conjunto descontínuo e heterogéneo, de um esforço na tentativa de inspirar uma monumentalidade a um espaço de tão alta protecção. O claustro, de grande limpidez estrutural, é dotado de cinco tramos em cada alçado ritmados por possante contrafortagem: se, no piso térreo, os vãos são resolvidos por arcos de volta inteira, no superior, num sistema pouco comum na arquitectura renascentista portuguesa, corre uma galeria arquitravada assente em finos colunelos. A direcção do já mencionado Torralva não iria ser exercida de forma continuada e atenta, compreendendo-se, assim, a persistência de pormenores tardo-góticos no desenho de alguns dos colunelos de ambos os pisos e as diferenças de composição, bastante mais pobres, que apresenta em relação a outras obras de sua autoria.
Francisco Antonio de Almeida
A estrutura da Igreja da Madre de Deus foi, talvez, construída ao tempo de D. João III, tendo-se rasgado uma entrada lateral tal como convinha a uma casa religiosa feminina constituída, apenas, por um portal de desenho moderno ladeado por duas colunas e uma tabela de remate sobrepujada por frontão triangular. Além disso, descontando as pequenas intervenções de manutenção que um edifício desta dimensão requeria, atravessou, quase incólume, a totalidade do século XVII. As fabulosas riquezas provenientes do Brasil e o espírito do magnífico reinado de D. João V chegaram ali ao mesmo tempo que a muitos outros templos de Lisboa, pejando-o de talha dourada, azulejos, mármores polícromos e móveis sacros em raríssimas madeiras provenientes das mais recentes conquistas. Em 1746 reformulou-se a sacristia, trabalho devido ao mestre carpinteiro António da Silva e ao entalhador Félix Adauto da Cunha, que compreendeu a execução dos arcazes, das portas e das molduras das telas do pintor André Gonçalves. Além da abertura de uma cúpula sobre o cruzeiro e do enriquecimento interior verificados ao longo de todo o século XVIII, a capela-mor recebeu, após o terramoto de 1755, um retábulo de expressão já em estilo rococó animado por um trono de grandes dimensões. Na igreja, muito depurada na sua concepção estrutural, o fausto decorativo alcançava, não apenas através das formas de arte presentes como pelos materiais empregados na conjugação e na harmonia, uma exuberância de grande efeito visual. Esta solução de unidade do azulejo e da talha utilizada no mesmo repertório ornamental, assim como da representação pictórica que, além do suporte, possui como fonte a gravura, permitiu dinamizar o interior de muitos edifícios, principalmente religiosos, cumprindo assim um dos seus principais objectivos, isto é, o de persuadir o observador. A decoração dos espaços ultrapassava a função puramente estética e a qualidade artística das obras subordinava-se, em geral, a um programa orientado de divulgação de uma fé revivificada. A arte era, pois, um meio devocional que devia ensinar e comover os fiéis e transmitir a ostentação real e a teatralização dramática do dogma, ou seja, as expressões típicas da sociedade de então.
De acordo com a doutrina de grande devoção à Virgem, segundo a evocação do Mosteiro da Madre de Deus e da ordem religiosa nele presente, as narrativas dos Evangelhos, o exemplo moralizador da vida e do martírio dos santos e a ausência ou alteração de algumas obras não impediram o entendimento do seu programa iconográfico. Concebida para ser o palácio de Deus, a igreja possui três núcleos – a nave, o cruzeiro e a capela-mor – que definem a representação do programa litúrgico expressado através da arte e correspondem ao espaço reservado a cada um dos níveis da assembleia, estabelecendo, assim, uma hierarquia onde a nave está reservada aos fiéis e a capela-mor, num plano mais elevado, ao clero. Um complexo programa de devoção e exaltação a Maria, genetriz de Jesus, que, a partir do Concílio de Éfeso de 431, foi proclamada Mãe de Deus, é desenvolvido neste templo da sua evocação. Aliás, na história cristã concedeu-se sempre um lugar muito especial à Virgem, a quem são dedicados muitíssimos outros, facto que levou a Contra-Reforma a reforçá-la como imagem da vitória sobre as heresias. Às ordens monásticas coube, então, a incumbência de exaltar esta nova religiosidade, tendo os franciscanos, pelo seu ideal apostólico, desempenado um papel fundamental na difusão do respectivo culto. Do revestimento azulejar colocado na nave que divide a igreja do coro-baixo salienta-se o painel “Moisés e a Sarça Ardente” da autoria do pintor holandês Willem van der Kloet, cujo tema, numa mensagem de concordância do Antigo com o Novo Testamento, profetiza a Virgem a conceber e a parir sem pecado. Os restantes painéis, representando eremitas e cenas comuns à ordem, lembram a intenção deste espaço, isto é, a meditação, a clausura e o silêncio. Nos rodapés, a figuração dos quatro elementos da Natureza e dos cinco sentidos remete para o Homem que, ao longo das suas idades, simbolizadas pelos elementos naturais, pode, através daqueles últimos, elevar-se até ao Altíssimo se seguir sempre o exemplo de Cristo.
Pintura e talha preenchem, num nível superior, as paredes laterais da nave da Igreja da Madre de Deus, delimitando a estrutura através de planos intrinsecamente relacionados com a importância artística em que, na época, se dividiam as Artes. Em dois registos, e num extenso programa didáctico que se lê no seu todo pelo respectivo encadeamento, são narrados episódios das vidas de São Francisco e de Santa Clara. Servindo de guias, ambos os fundadores desta ordem lembram aos fiéis o modelo divino, cujas telas são exemplo perfeito do culto militante deste período e onde persistem temas já antes usados ao serviço da fé embora desenvolvidos por uma nova dinâmica dos ciclos narrativos. Em contacto directo com os crentes, e tal como os religiosos que, à semelhança dos Apóstolos, levavam os Evangelhos às populações, o ciclo de Francisco encontra-se colocado no primeiro registo, enquanto, no nível superior, o de Clara, em ligação directa com o coro, onde as freiras ouviam missa e meditavam, remete para a clausura feminina. A ampliação do programa iconográfico às coberturas, praticamente circunscrito à Vida da Virgem e à Paixão de Cristo, atingiu o apogeu na primeira metade do século XVIII. Em homenagem à mais venerada intercessora dos santos e dos homens, o tecto e o arco triunfal do templo exaltam Maria, Rainha dos Anjos, sendo este último reservado aos temas celestiais – Assunção, Glorificação e Coroação – e possuindo um forte sentido ideológico com a representação desta última encimada pelas armas reais portuguesas. Ali, a hierarquização e a mensagem ultrapassam o sentido religioso numa demonstração de emanação directa e divina do poder régio.
Heinrich Isaac
A conjugação do azulejo com a talha dourada existente na Igreja da Madre de Deus, um típico material reflector de luz, proporciona o efeito ilusório de aumento do espaço. Para além da função de emolduramento da pintura pontuam importantes elementos arquitectónicos como cimalhas, intradorso dos arcos e fustes das pilastras, evidenciando expressividade e autonomia e atingindo, nas cantoneiras, um valor próprio da escultura que acentua a simbólica das armas reais colocadas no fecho do arco triunfal. Os altares laterais, um com as relíquias de Santa Auta, oferta de Maximiliano I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico e primo de D. Leonor, e outro com a Sagrada Família, apesar de não possuírem o esplendor de exemplares semelhantes, assumem uma função ilusória, ou seja, de pálios de onde pendem cortinas de ouro trabalhadas num segundo plano. A capela-mor, área mais sagrada do templo e, por isso mesmo, apenas reservada às altas hierarquias da comunidade, reflecte, pela existência da tribuna, a distinção que a família real, segundo a tradição assídua a aqui ouvir missa, sempre concedeu ao local. O altar-mor, reconstruído após o terramoto de 1755, corresponde a um outro género de gosto pela estilização e pelo requinte, quase gráficos, da sua composição e exprime uma tímida aproximação à estética de finais de setecentos. O coroamento do respectivo frontão, com as esculturas da Fé e da Esperança, acentua, através da ausência de uma imagem da Caridade, isto é, a maior das três Virtudes Teologais, a sua presença espiritual como elemento fundamental da igreja. A imagem do altar é de Nossa Senhora dos Prazeres, escultura de porte, policromada, cuja presença é magnificamente evidenciada pelo refulgir dourado da talha que a enquadra. Esta evocação da Virgem representa a alegria da Mãe ao ver o Filho de Deus ressuscitado, circunstância que explica a escolha para oráculo numa mensagem de esperança aos fiéis.
Georg Philipp Telemann
Situada já na zona de clausura, parte da primitiva construção do Convento da Madre de Deus é o actual coro-baixo, o qual, após as já mencionadas obras ao tempo de D. João III em meados do século XVI, passou a sala do capítulo, onde se efectuavam as reuniões solenes, e foi utilizado como capela mortuária. Sempre contíguo ao templo, o claustro mantém-se como um lugar elementar da vida monástica, através do qual se ligam, em simultâneo, todos os espaços e dependências e se pratica a contemplação e a meditação necessárias à comunidade. Ali, a fonte é a imagem da água que brotava no Paraíso junto da Árvore da Vida e corria nas quatro direcções cardeais simbolizadas por alamedas de vegetação. O movimento perpétuo daquele elemento representa, na linguagem sagrada dos cenóbios, a certeza da vida eterna garantida pela purificação do baptismo. No centro, a fonte, de feição tardo-medieval, tem a particularidade de possuir seis pequenos atlantes suportando a bacia, cujas filactérias, com caracteres góticos, contêm as seguintes inscrições:
– “Ajuda-me!”;
– “O melhor que posso.”;
– “E tu que não ajudas?”;
– “Não posso mais!”;
– “Muito pesado.”;
– “Deus nos ajude.”.
No extremo da galeria poente, junto ao coro-baixo, em campa rasa segundo o espírito da Devotio Moderna, um movimento de renovação da vida espiritual, originário dos Países Baixos, que advogava uma relação mais directa com Deus, três lápides recordam aos visitantes as presenças de Soror Coleta, a primeira abadessa do Mosteiro, de D. Isabel, irmã da soberana, e da própria D. Leonor.
Heinrich Isaac – Missa Paschalis I
O coro das igrejas, local onde os religiosos assistem e participam na liturgia, insere-se, de um modo geral, na capela-mor. Em certos casos, como nos conventos femininos de clausura, esteve sempre separado, com maior ou menor rigor, do mundo exterior, originando o denominado “coro alto” por se encontrar, num plano mais elevado, ao fundo da nave. A clausura, não permitindo a entrada no templo, alarga a sua função para além da vida litúrgica de contemplação e meditação a que usualmente está destinada, ou seja, à celebração da missa conventual através da presença do Tabernáculo do Santíssimo Sacramento. Porém, o Mosteiro da Madre de Deus inseriu-se no espírito que, na primeira metade de setecentos e através da redecoração e da utilização dos mesmos materiais – talha, azulejo e pintura –, presidiu a uma transformação barroca, criando um espaço de verdadeira eleição. Foram, pois, conjugados e enquadrados num preenchimento meticuloso revelador de uma grande qualidade artística e responderam ao objectivo que já não o de divulgação do dogma da Igreja mas da consolidação da edificação moral através do estímulo devoto.
Heinrich Isaac – Missa Paschalis II
O programa iconográfico, estabelecido, no Convento da Madre de Deus, sem a constante função didáctica, visava uma acção moralizadora destinada a assembleias que entendiam a mensagem das Escrituras e procuravam o caminho para a Santidade através de uma vida activa, contemplativa e, sobretudo, de penitência. Grande parte do seu quotidiano era dedicada à meditação e, segundo testemunhos das próprias enclausuradas, relatava as flagelações a que se sujeitavam, complementando-se, tudo isto, com a presença de imagens destinadas à consolidação do caminho místico até ao Criador. O facto, não muito comum, de funcionar simultaneamente como Casa do Tesouro, isto é, o local destinado a guardar as relíquias, o bem mais precioso do culto, aumentou, por um lado, a carga moral, e, por outro, engrandeceu a sua sumptuária. Os relicários, executados num qualificado trabalho de talha dourada, integram, em todo o esplendor, o vasto conjunto de restos mortais de santos e mártires, em grande parte de oferta régia, que acabaram por torná-lo famoso. No imponente tabernáculo inscrevem-se os símbolos de autoridade, de novo numa nítida estruturação hierárquica onde a expressão do poder temporal é feita através do escudo real sobreposto pelo Santíssimo Sacramento e encimado pelo Todo-Poderoso. No coroamento, tal como no altar-mor, surgem as Virtudes Teologais, Esperança e Caridade ladeando a Fé que se encontra num plano mais elevado. Junto aos altares podem ver-se os retratos de D. João III e de D. Catarina com os seus santos protectores que, segundo o cronista Frei Jerónimo de Belém, foram encomendados pelos próprios monarcas para ali serem colocados. Considerados segundos fundadores do cenóbio e representados como orantes, descobriram neste espaço um local privilegiado pela proximidade com o tabernáculo e pela evocação permanente da sua memória junto das religiosas. Estes quadros, datados de meados do século XVI e de autoria atribuída a Cristóvão de Morais, tiveram como modelo a obra de Anthonius Moro, pintor da corte espanhola que, cerca de 1551, laborou em Portugal. As janelas, em plano muito elevado, reforçam a simbologia do conjunto através de um revestimento lateral com oito painéis de azulejos, onde as heroínas bíblicas do Antigo Testamento são representadas em imagens simbólicas das qualidades da Virgem e, numa integração perfeita, redobrando o efeito decorativo e celestial, reflectem a luz solar.
Heinrich Isaac – Missa Paschalis III
As consequências da extinção das ordens religiosas em 1834 e da venda dos bens nacionais abriram, na história do Mosteiro da Madre de Deus, um novo capítulo. Com efeito, em 1869, uma equipa, coordenada pelo arquitecto e erudito José Maria Nepomuceno, apresentou um projecto para a reconversão do conjunto monástico em edifício afecto ao asilo D. Maria Pia, incluindo um plano para a instalação de um pequeno espaço museológico. A intervenção por ele iniciada e continuada por diversos técnicos do Ministério das Obras Públicas, entre os quais avultou Francisco Liberato Telles, alterou, de modo irreversível, toda a parte conventual, adaptando-a a novas funções e utilizando, nas zonas nobres, um critério de recuperação dos supostos valores originais. A atitude historicista dos técnicos e responsáveis entende-se no âmbito de uma cultura tardo-romântica que não apenas aspirava à unificação plástica do conjunto – ora eliminando descontinuidades construtivas, ora impondo ritmos sequenciais à fenestração – mas pretendia, também, repor a verdade do edifício como se sobre ele não pesassem as alterações inevitáveis de quatro séculos de história. Segundo testemunhos da época foi o portal sul desentaipado ou, mais certamente, reconstruído com base nas já referidas tábuas de Santa Auta, inventando-se na fachada, além disso, vãos de molduração neo-manuelina ao mesmo tempo que lhe era acrescentada uma platibanda bastante recortada e gárgulas fantasiadas de sabor medieval. Porém, o pormenor mais curioso daquela reforma mostra os limites da arqueologia empírica dos reconstrutores oitocentistas, pois, num dos capitéis dos colunelos do piso superior do claustrim, o canteiro, dividido talvez entre o fascínio da técnica e da velocidade e a suspensão do tempo que o espaço evoca, não se olvidou de gravar a imagem de um comboio a vapor. Em pleno século XX, sobretudo na década de 50, a arquitectura deste eclético local sofreu novas alterações com a preparação da exposição comemorativa do quinto centenário do nascimento de D. Leonor; na de 60, através da salutar iniciativa de João Miguel dos Santos Simões, estruturaram-se as primeiras salas da exposição permanente do anexo de azulejaria e cerâmica do Museu Nacional de Arte Antiga; na de 80, com a “XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura”, foi-lhe conferido o enquadramento paisagístico da traça do arquitecto Francisco Caldeira Cabral e a instalação definitiva e autónoma como Museu Nacional do Azulejo. Por fim, na de 90, aquando da eleição de Lisboa como “Capital Europeia da Cultura”, foram efectuados arranjos pontuais de adaptação do edifício a novas necessidades museológicas que, no entanto, não deixaram de manter e valorizar uma linha de leitura da sua história global.
The Hilliard Ensemble: In Paradisum
Não posso deixar de lamentar a carga pejorativa da frase ‘Ainda presa ao universo das solidariedades medievais…” que li no início deste informativo texto. Gostaria de esclarecer que, sem as práticas medievais na área da assistência social, não se teria chegado a iniciativas como a de D. Leonor, aqui retratada — como, de resto, insistem em veicular os historiadores ‘modernistas’ — na qualidade de pioneira em diversas actividades que, muito antes dela, outras figura régias e nobres praticavam na mesma linha. Por exemplo, o patrocínio ou mecenato cultural, nomeadamente artístico, de monarcas (bem como de nobres, prelados e outros elementos mais abastados da sociedade medieval)foi prática corrente desde sempre. No ocaso do século XV ou, como mais recorrentemente se continua a afirmar, fazia-se muito do que vinha de trás. E D. Leonor não foi, pois, uma excepção.
Peço desculpa por voltar a intervir, mas a penúltima frase do meu comentário ficou truncado. Permitam-me a ‘errata’: queria eu dizer que, no ocaso do século XV ou, como mais recorrentemente se continua a afirmar, no princípio do século XVI, fazia-se muito do que vinha de trás.
Obrigada.