Archive for the ‘ Poesia ’ Category

Porque me beijou Perico, porque me beijou o traidor.

Este Vilancico pertence ao delicado livrinho ‘Jardim de Poesias Eróticas do Siglo de Oro’, com selecção, tradução, introdução e notas de José Bento, numa edição da Assírio e Alvim.
Quem tiver curiosidade de comparar com a tradução que aqui encontrei, facilmente constata a subjectividade que cada autor empresta à obra traduzida. Não será o caso, mas há textos que nem se deviam traduzir!

Porque me beijou Perico, 
porque me beijou o traidor. 

    Que estando, mãe, a dormir,
do que estou arrependida,
senti-o estar a subir
minha camisa florida;
mesmo de riso esvaída,
pensá-lo dá-me temor,
porque me beijou Perico, 
porque me beijou o traidor.

   E estando eu, como vos digo,
a dormir me surpreendeu;
tocou-me sob o umbigo,
tudo quanto Deus me deu.
Assim, como quereis que eu
possa por ele ter amor?
Porque me beijou Perico, 
porque me beijou o traidor. 

   Porque, com artes mesquinhas,
remexeu pouco a pouquito
suas pernas entre as minhas
até que me deu no fito:
é meu sofrer infinito,
já não pode ser maior,
porque me beijou Perico, 
porque me beijou o traidor. 

   Que, como se meneava,
mais se mostravam gostosos,
dois mil gozos que me dava
como açúcares saborosos.
Deu-me uns beijos tão sumosos
que jamais perco o sabor.
Porque me beijou Perico, 
porque me beijou o traidor.

“Susana y los viejos”, de José de Ribera

Para Ana Margarida 🙂

Paul Verlaine par Patricia Barber

Dansons la gigue!

 J'aimais surtout ses jolis yeux
 Plus clairs que l'étoile des cieux,
 J'aimais ses yeux malicieux.

   Dansons la gigue!

 Elle avait des façons vraiment
 De désoler un pauvre amant,
 Que c'en était vraiment charmant!

   Dansons la gigue!

 Mais je trouve encore meilleur
 Le baiser de sa bouche en fleur
 Depuis qu'elle est morte à mon coeur.

   Dansons la gigue!

 Je me souviens, je me souviens
 Des heures et des entretiens,
 Et c'est le meilleur de mes biens.

   Dansons la gigue!

Formosura Que Excedeis

Formosura que excedeis
mesmo as grandes formosuras!
Sem ferir, sofrer fazeis,
e sem sofrer desfazeis
o amor das criaturas.
Oh, laço que assim juntais
duas coisas díspares!,
não sei porquê vos soltais,
pois atando força dais
pra ter por bem os pesares.
Quem não tem ser vós juntais
com o Ser que não se acaba;
sem acabar, acabais,
e sem ter que amar amais,
engradeceis o nosso nada.
in Rosa do Mundo, de Santa Teresa de Ávila (1515-1582)
Assírio & Alvim, 2001 – tradução de José Bento
Jacques Blanchard – Venus and the Three Graces Surprised by a Mortal, c. 1631 – 1633
Musée du Louvre

Fundo do mar

Praia das Conchas

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Obra Poética I

A Memória

A memória foi um género literário
quando ainda não tinha nascido a escrita.
Veio a ser depois crónica e tradição
mas já fedia como um cadáver.
A memória vivente é imemorial,
não surge da mente, não se enraiza nela.
Junta-se ao existente como uma auréola
de névoa na cabeça. Está já esfumada, é duvidoso
que regresse. Nem sempre tem memória
de si.
Poema de Eugenio Montale, extraído de «Caderno de Quatro Anos» (1960 e 1973-1977)
Gravura de William Blake, extraída do poema ilustrado “Jerusalém”

A flor que és, não a que dás, eu quero

Ad juvenem rosam offerentem
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço?
Tão curto tempo é a mais longa vida,
E a juventude nela!
Flor vives, vã; porque te flor não cumpres?
Se te sorver esquivo o infausto abismo,
Perene velarás, absurda sombra,
O que não dou buscando.
Na oculta margem onde os lírios frios
Da infera leiva crescem, e a corrente
Monótona, não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo.
Ricardo Reis, 1923
Hans Baldung Grien – “Three Ages of Man”, 1539

A música, sim a música…

A música, sim a música…
Piano banal do outro andar.
A música em todo o caso, a música..
Aquilo que vem buscar o choro imanenre
De toda a criatura humana
Aquilo que vem torturar a calma
Com o desejo duma calma melhor…
A música… Um piano lá em cima
Com alguém que o toca mal.
Mas é música…
Ah quantas infâncias tive!
Quantas boas mágoas?,
A música…
Quantas mais boas mágoas!
Sempre a música…
O pobre piano tocado por quem não sabe tocar.
Mas apesar de tudo é música.
Ah, lá conseguiu uma música seguida —
Uma melodia racional —
Racional, meu Deus!
Como se alguma coisa fosse racional!
Que novas paisagens de um piano mal tocado?
A música!… A música…!

Álvaro de Campos, 1934
Gravura de Hans Baldung Grien “Music”, 1529

Para quê tanta pressa?

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo…

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Poema de Jorge de Sena | Gravura de François-Edouard Picot – Cupid and Psyche, c.1817

A Cristo Crucificado

Não se sabe quem escreveu este soneto A Cristo Crucificado, impresso pela primeira vez no Libro intitulado vida del espíritu, de Antonio Rojas, editado em Madrid em 1628. As atribuições da sua autoria que têm sido feitas (a Santa Teresa de Ávila, S. Francisco Xavier, Pedro de los Reyes, Santo Inácio de Loiola, Lope de Vega, etc.) não são credíveis.

in Antologia da Poesia Espanhola do Siglo de Oro, segundo volume – Barroco
selecção e tradução de José Bento
    Não me move, meu Deus, para querer-te

o céu que tu me tens já prometido;
nem me move o inferno tão temido
para deixar por isso de ofender-te.

    Moves-me tu, Senhor; move-me o ver-te

cravado numa cruz e escarnecido;
move-me ver teu corpo tão ferido,
tua morte e insultos a erguer-te.

    Move-me o teu amor, de tal maneira

que, mesmo sem o céu, inda te amara
e, mesmo sem o inferno, te temera.

    Nada tens que me dar pra que te queira;

pois embora o que espero não esperara,
o mesmo que te quero te quisera.

Cristobal de Morales “Missa Pro Defunctis”, a 5 – Introitus
La Capella Reial De Catalunya | Hesperion XX | Direction: Jordi Savall (1992) Astree

Música, levai-me!

Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?

‎[Eugénio de Andrade]