Dez anos passaram desde que Joana Amorim e Fernando Miguel Jalôto, recém-regressados da Holanda, decidiram formar um grupo de música de câmara para interpretar o seu repertório favorito: as obras instrumentais do Barroco francês; 10 anos em que o grupo foi crescendo e amadurecendo. Quando se comemoram os 300 anos da composição desta obra-prima da música de câmara, os quatro Concerts Royaux, passam também 300 anos sobre o desaparecimento de uma figura essencial da História e da Cultura europeias, Luís XIV, para quem, segundo as palavras do autor, F. Couperin, estas obras foram escritos:Leitura associada: Artigo de Cristina Fernandes, no Público.

Jordi Savall e o agrupamento Hespèrion XXI encerram com um concerto no próximo domingo às 19h00 o ciclo da Gulbenkian dedicado à Semana da Cultura Arménia, precedido de uma conferência com a presença do músico catalão, que terá lugar às 17h30, de entrada livre.
Assim, considero oportuno reproduzir o artigo que João Chambers escreveu para a separata do Público, dedicada à Programação de Música Antiga para a Temporada 2014/2015 da Gulbenkian.
Presença habitual no nosso país, em particular nos festivais de Alcobaça (“Cistermúsica”), do Baixo Alentejo (“Terras sem Sombra”), de Leiria, de Loulé, da Madeira, de Castelo Branco, da Póvoa de Varzim, do Porto (Casa da Música) e de Lisboa (Jornadas Gulbenkian de Música Antiga de gratíssimas memórias), o investigador, docente, musicólogo, gambista e director de orquestra Jordi Savall i Bernadet nasceu em Igualada, na província de Barcelona, a 1 de Agosto de 1941. Iniciou a sua carreira profissional em meados da década de 60 do século passado através da criação, a par da mulher – a saudosa Montserrat Figueras –, dos colectivos Hespèrion XX (1974, XXI com o advento do novo milénio), La Capella Reial de Catalunya (1987) e Le Concert des Nations (1989), à frente de quem se tem apresentado em frequente actividade concertística por todo o mundo, além da etiqueta discográfica Alia Vox (1998). Transcorrida mais de década e meia, com cerca de uma centena de CD editados e o impressionante número de três milhões vendidos no horizonte, é já possível avaliar essa mais do que notável trajectória. Concluiu os estudos superiores de música e de violoncelo no Conservatório de Barcelona, rumando, em seguida, a Basileia com o fito de os aprofundar na Schola Cantorum Basiliensis, em particular o de um instrumento – a viola da gamba – caído em quase absoluto e injusto olvido, ao mesmo tempo que pugnava por fazer renascer o prestígio do património antigo oriundo da Península Ibérica. Discípulo do conceituado August Wenzinger, um dos pioneiros do movimento historicamente informado a quem sucedeu em 1973, foi, a datar de então, que se começou a interessar pela recuperação de repertório pré-romântico não como uma pesquisa marcada por qualquer interesse arqueológico, mas numa nova atitude face a um legado cultural do passado que Oitocentos deturpou ou, simplesmente, negligenciou. É essa herança que, teimosamente, persiste como a referência estética no gosto de muitos e que em nada partilha os genuínos ideais dos períodos medieval, renascentista, barroco e clássico. Num percurso de mais de quarenta anos recebeu numerosas distinções de diversas nações europeias como a França, a Áustria, a Bélgica, a Alemanha, a Dinamarca, Portugal e, naturalmente, Espanha, além de nomeações honoríficas concedidas pela União Europeia e pela UNESCO.
Sobre o diálogo intercultural que mobiliza, desde sempre, o seu particular interesse, Savall entende que os intérpretes têm a responsabilidade de recordar, e não só aos melómanos mais atentos a esse fenómeno, que os laços sempre existiram e, em consequência, perduram ao longo dos tempos. A primeira gravação, ainda em vinil, de meados da década de 1970, para uma multinacional e consagrada ao Século de Ouro do país vizinho, contém já várias árias da diáspora sefardita. Ali pretendeu (e conseguiu) mostrar que a música sacra e de corte dos Reis Católicos – Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão – e a tradição oral partilham raízes comuns e que esta aparentemente artificial aproximação acaba por não o ser. No decorrer das primeiras abordagens de manuscritos da Idade Média com instrumentistas do Médio Oriente, o grande mestre catalão ficou deveras admirado com a celeridade com que estes se adaptavam e encontravam os próprios sinais de referência. Era, pois, natural dar a conhecer esse acervo com tangedores de oud marroquino ou turco, modelo que deu origem ao alaúde e caracterizado, sobretudo, pela ausência de trastes, visto se terem preservado, quase intactas, as práticas ancestrais. Aproximar-se delas converteu-se num exemplo diário, já que era usual improvisarem de modo mais espontâneo do que nas nações ocidentais e realizarem, naturalmente, o que no Velho Continente se tenta obter através de trabalho árduo, atenuando-lhes o peso da harmonia e da polifonia. Paradoxalmente, a cultura ocidental desconcerta-nos em casos semelhantes, verificando-se tal circunstância ao comparar os desempenhos dos anos de 1970 aos actuais. Antes, tudo era preparado, notado e escrito, proporcionando que o Hespèrion XX fosse um dos primeiros grupos a utilizar partituras antigas nunca estudadas ou ensaiadas, mas susceptíveis de promover um trabalho de pura improvisação. Exemplo de tal perspectiva foi a ainda hoje versão de referência do Llibre Vermell de Montserrat, realizada segundo essa filosofia e que permanece bastante actual, em virtude de a opção ocupar ali um lugar de destaque, conquanto tivesse necessitado, como é óbvio, de um vasto e detalhado trabalho de pesquisa e resultante decisão.
Sobre as graves ameaças que, na actualidade, pairam em grande parte das vastas regiões compreendidas entre o Oriente e o Ocidente, Savall salienta o choque de civilizações, a incompreensão e o enclausuramento nas próprias culturas. Para manter viva essa relação, diz ser necessário ambos entregarem-se e, sobretudo, aceitarem-se mutuamente. Estabelecer um vínculo com o desconhecido implica deixar-se interpelar pelo outro, condescender numa determinada fragilidade e abandonar posições privilegiadas, já que, durante séculos, se convencionou que o mundo ocidental possuía o dom da verdade e evoluía no sentido de uma humanização iluminada. A tolerância, com o que permite entrever de condescendência, é o sinal mais forte de virtude e de altruísmo. Todavia, os contrastes subsistem e foram sentidos por ocasião dos projectos que reuniram membros provenientes de longínquas paragens, onde as políticas vigentes semeiam amiúde a discórdia. A tensão foi, desde logo, sentida no decurso dos primeiros ensaios, o que não impediu a inesperada e agradabilíssima surpresa de ver, por exemplo, israelitas e palestinianos a confraternizarem, em conjunto e com as mesmas obras, nas pausas das múltiplas sessões de trabalho. Nada nem ninguém a tal os obrigava! Era, apenas, a espontaneidade e a força da arte dos sons que contribuía para a fraternidade, incitando ao diálogo e ao respeito mútuos e tornando consciente que a reconciliação será sempre possível se se aceitarem as diferentes formas de pensar. Este tipo de desígnios transversais corresponde, manifestamente, a temáticas e a chamadas de atenção de enorme actualidade, permitindo que edições consagradas a Istambul, a Jerusalém ou ao “Espírito da Arménia”, o qual, antecedido por uma conferência sobre o tema, irá ser apresentado, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (dali natural embora naturalizado cidadão britânico), no próximo dia 19 de Outubro, figurem entre as maiores vendas do catálogo Alia Vox.
Por vezes acontece os melhores exercícios de fusão serem os que, em absoluto, o não parecem, o que define o “Espírito da Arménia” como um perfeito paradigma. As peças que Savall recolheu para esta antologia em disco – uma selecção de um género meditativo e transcendental originário daquele território montanhoso do Cáucaso do Sul, de história conturbada e trágica, atingido por incessantes conflitos, morticínios e deportações – evidenciam origens antigas, cujas sonoridades são, por certo, familiares aos amantes do repertório da época. Os timbres do Hespèrion XXI, todos em perfeita consonância, integram-se, com naturalidade, entre as composições de Sayat Nova (c.1712-1795), as transcrições de Komitas Vardapet (1869-1935), a madeira do duduk, instrumento tradicional de sopro que parece deter o passar dos tempos, e os arcos da kamancha, também de proveniência local, de cordas friccionadas e semelhante à viola da gamba. O espírito, de nobre lamento, estende-se, por outro lado, à memória das vítimas do até agora assaz desconhecido genocídio arménio (1915-1917) quase um século após esta calamitosa ocorrência nunca ter sido reconhecida inclusive por diversos Estados europeus ditos civilizados.
Afirmando que a beleza é unicamente para os sentidos, enquanto a graça é uma conjunção de encanto e espiritualidade que nos toca a alma, Jordi Savall sempre acreditou numa fascinante frase, extraída da fábula “A raposa e o bode” do setecentista Jean de La Fontaine, que reza assim:
“A graça é ainda mais bela do que a beleza!”.
Depois de ter revelado ao mundo como a flauta de bisel podia ser um instrumento fascinante, Brüggen converteu-se num mestre que inspirou gerações de instrumentistas e num dos mais admirados maestros especializados na música do Barroco e do Classicismo.
Por Cristina Fernandes, Público de 15 Agosto 2014
Figura chave na redescoberta da flauta de bisel no século XX e brilhante maestro no âmbito do repertório barroco e clássico, o holandês Frans Brüggen (1934-2014) faz parte da geração de ouro que impôs definitivamente o movimento da música antiga interpretada em instrumentos de época de acordo com as práticas de execução históricas no panorama internacional. No próximo dia 30 de Outubro, Brüggen tencionava celebrar o seu 80.º aniversário com a Orquestra do Século XVIII, agrupamento que fundou em 1981 e que protagonizou muitas das suas inesquecíveis gravações dedicadas a compositores como Bach, Rameau, Haydn, Mozart e Beethoven, mas a morte acabaria por surpreendê-lo esta quarta-feira, em Amesterdão, a sua cidade natal.
Frans Brüggen plays J.S.Bach and G.F.Händel, works for Recorder and Traverso (Traversflöte – German flute). With Anner Bijlsma (Barockvioloncello), Gustav Leonhardt & Bob Van Asperen (Harpsichord/organ)
Pioneiros como Arnold Dolmetsch ou Wanda Landowska tinham aberto o caminho, mas foi com personalidades como Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt, Anner Bylsma, os irmãos Kuijken ou o próprio Frans Brüggen que a corrente que viria a ser designada como “interpretação historicamente informada” ganhou a partir da década de 1950 os alicerces que a fizeram explodir em múltiplas direcções. Para além dos princípios gerais que implicavam o estudo dos tratados antigos, estilos e práticas interpretativas, assim como dos contextos que deram origem às obras, vários destes músicos tiveram papéis fundamentais na reabilitação de instrumentos que tinham ficado no esquecimento ao longo de quase dois séculos ou que entretanto tinham sofrido modificações. É o caso de Leonhardt no caso do cravo ou de Bylsma no âmbito do violoncelo barroco, ambos amigos e parceiros de Brüggen em interpretações notáveis do repertório barroco. Frans Brüggen foi o primeiro músico a obter um diploma em flauta de bisel no Muzieklyceum de Amesterdão. Foi aluno de Kees Otten, que tinha sido discípulo de Karl Dolmetsch (pioneiro na redescoberta do instrumento no século XX) e especializou-se também nas versões históricas da flauta traversa, domínios que combinou com estudos no campo da musicologia na Universidade de Amesterdão.
Telemann Fantasie (Frans Brüggen on his famous Bressan Treble recorder (1967)
Durante as décadas de 1960 e 1970 acabaria por se converter na primeira estrela internacional da flauta de bisel, um instrumento que antes era visto como limitado e que ainda hoje é por vezes considerado apenas como uma ferramenta didáctica para crianças.
Brüggen não só devolveu a nobreza de estatuto à flauta de bisel como deu a conhecer ao mundo o seu fascinante repertório da Renascença e do Barroco em interpretações marcadas por uma impressionante agilidade e fluência técnica, meticulosas articulações e variedade de ataques e por uma infinidade de nuances expressivas. A preocupação pelo rigor histórico aliava-se ao seu talento artístico, bem como às capacidades pedagógicas e ao lendário entusiasmo que incutia aos seus alunos, com impacto em várias gerações de músicos. Brüggen foi professor no Real Conservatório de Haia, Erasmus Professor na Universidade de Harvard e Regents Professor na Universidade de Berkeley e interessou-se também pela música contemporânea. Chegou a fundar um grupo de vanguarda em 1972 (Sourcream) e encomendou várias obras para flauta, das quais a mais conhecida é Gesti (1966), de Luciano Berio.
A carreira de Brüggen como flautista solista começou a ficar em segundo plano à medida que crescia o seu interesse pela direcção de orquestra, domínio onde atingiu igualmente uma elevada estatura. Um passo decisivo foi a criação da Orquestra do Século XVIII em 1981, um projecto nascido em conjunto com o musicólogo Sieuwert Verster. Formada por membros de 22 países diferentes, rapidamente atingiu grande notoriedade intenacional graças às digressões anuais e ao contrato discográfico com a Philips. Inicialmente o repertório incidia principalmente no Barroco (Purcell, Bach, Rameau), mas rapidamente se estendeu ao Classicismo (Haydn, Mozart) e aos primórdios do Romantismo (Beethoven, Schubert e Mendelssohn). As suas excelentes gravações podem também encontrar-se em etiquetas como a Harmonia Mundi e a Glossa. Juntamente com os registos como solista e músico de câmara formam um legado imponente de mais de cem discos e revelam o característico gosto de Brüggen pelo detalhe e pela transparência, mas também o seu carisma, energia e inteligência musical.
Como maestro convidado, Frans Brüggen dirigiu diversas formações de primeiro nível como Orquestra do Real Concertgebouw, a Orquestra da Idade do Iluminismo (da qual foi maestro convidado principal), a Orquestra de Câmara da Europa, Sinfónica de Birmingham, a Orquestra do Tonhalle de Zurique, e as Filarmónicas de Roterdão, Israel, Oslo, Hamburgo, Viena e Estocolmo, entre outras. Deixou também a sua marca no Coro Gulbenkian, que estabeleceu uma frutuosa colaboração com a Orquestra do Século XVIII na década de 1990, da qual resultaram diversas digressões conjuntas (com actuações na Holanda, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Holanda, Japão e China) e gravações como a Nona Sinfonia, de Beethoven, e A Criação, de Haydn.
A emissão do Musica Aeterna dedicada aos hoje assinalados 300 anos do nascimento de Carl Philipp Emanuel Bach pode ser escutada na Antena 2 no próximo domingo 9 de Março, entre as 10h00 e as 12h00.

