Arquivo de Setembro, 2005

Grandes Causas.. mais ou menos..

Senhor Procurador Geral da República:
Suponha que vivemos num Estado de Direito, onde as decisões dos Tribunais devem ser respeitadas.
Suponha ainda que todos os cidadãos são formalmente iguais perante a Justiça.
Agora, suponha que os portugueses esperam que o senhor dê voz à sua indignação, quando vêm os valores sociais esbulhados de tal forma que sentem vergonha do seu país!
Continua a entender que é simplesmente “uma questão que tem a ver com os cidadãos” e não consigo?

Actualização do post Grandes Causas:

Artur Marques – o advogado da senhora – disse ao Expresso que a decisão é irrecorrível, porquanto a lei só permite o recurso da aplicação da prisão preventiva e não da sua revogação.
Se ele sabe do que fala.. e agora, José?

Mas nem tudo são pesadelos.

A 20 de Novembro, os deuses menores que dão pelo nome de Sigur Rós, tocam no Coliseu, naquele que se espera seja um momento de sonho (li sobre o concerto da semana passada no Beacon Theatre de New York, que fizeram uma pausa de 30 segundos entre duas músicas.. e o público permaneceu em silêncio absoluto!).
Vêm apresentar o novo trabalho – Takk – que se pode ouvir quase na totalidade aqui, em Free Stream.
Para disfrutar, antes que volte ao éter!

Atrás de um vaso de nuvens, um sol acorda da sua letargia, refresca-se com pequenas gotas de chuva, brinca com as chamas do fogo e faz um arco-íris.

Resistência aos calendários

Os Verões

Foram longos e ardentes os verões!
Estávamos nus à beira-mar
e o mar ainda mais nu. Com os olhos,
e em nossos corpos ágeis, fazíamos
a mais ditosa possessão do mundo.

Chegavam-nos as vozes acesas de luar
e era a vida cálida e violenta,
ingratos com o sono decorríamos.
O ritmo das ondas tão escuro
abrasava-nos eternos e éramos só tempo.
Apagavam-se os astros na alvorada
e, com a luz que regressava fria,
furioso e delicado principiava o amor.

Parece hoje um engano que fôssemos felizes
à maneira dos deuses, imerecida.
Que estranha e breve foi a juventude!

Francisco Brines, 1986

Grandes Causas

Senhor Procurador Geral da República:
Suponha que vivemos num Estado de Direito, onde as decisões dos Tribunais devem ser respeitadas.
Suponha ainda que todos os cidadãos são formalmente iguais perante a Justiça.
Agora, suponha que os portugueses esperam que o senhor dê voz à sua indignação, quando vêm os valores sociais esbulhados de tal forma que sentem vergonha do seu país!
Continua a entender que é simplesmente “uma questão que tem a ver com os cidadãos” e não consigo?

A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou hoje que o Ministério Público (MP) vai recorrer da anulação da prisão preventiva de Fátima Felgueiras, por “não concordar com a decisão” tomada ontem pelo tribunal de Felgueiras. Segundo a lei, o MP tem um prazo de 15 dias para recorrer da decisão.

Acho que foi uma decisão de um juiz que eu tive que respeitar, tal como o MP respeita. Simplesmente como o Ministério Público não concorda com a decisão tomada vai interpor recurso“, afirmou o procurador-geral da República, José Souto Moura, em declarações à RTP.

Confrontado com a possibilidade de os cidadãos ficarem perplexos com esta interpretação da lei, o procurador respondeu: “Isso é uma questão que tem a ver com os cidadãos e não comigo“.

Alguém estaria à espera que eu dissesse que o estado da justiça é bom? Suponho que ninguém está à espera disso“, disse ainda Souto Moura.

Fonte: Jornal Público

A exemplo da iniciativa do Abrupto no caso OTA, sobre as declarações do Ministro da Economia, seria do maior interesse que a blogosfera desse mais um sinal inequívoco, difundindo esta pergunta, nestes ou noutros termos que – alguém que partilhe esta indignação – entenda mais adequados.

Vénus e Marte, de Botticelli

A pintura florentina da segunda metade do séc. XV sofreu uma transformação cultural que evoluiu de uma cultura cívica para uma cultura palaciana, em grande medida pelo poder e influência dos Médicis.

Vénus e Marte, de Sandro Botticelli (1445-1510) ilustra essa mudança.

venus-marte_sandro-botticelli_1445-1510

Vénus e Marte - Sandro Botticelli, 1480

Vénus, a Deusa do Amor – aqui ricamente trajada e com uma postura vigilante – conquistou Marte, o Deus da Guerra, que – despojado de pensamentos bélicos – dorme no chão, rodeado pelos faunos.
Vénus e Marte refletem o amor espititual, que se sobrepõe à violência.

“O Pensamento Platónico alia-se ao Cristianismo sob a forma de tensão erótica”

É curioso como Vénus, em aparente estado de alerta, tem uma postura algo descontraída, enquanto Marte, com a cabeça reclinada, sugere algum movimento, pela postura dos braços.

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Vénus e Marte - Sandro Botticelli, 1480 (detalhe)

Da memória dos homens

Provavelmente, um dos mais terríveis desastres naturais na Europa foi o terramoto que destruiu Lisboa – uma das mais bonitas cidades do Velho Continente – no dia 1 de Novembro de 1755.
Houve três grandes terramotos: o primeiro foi o maior, às 9:40 da manhã. Seguiram-se outros dois, às 10:00 e ao meio-dia.
O choque principal durou seis a sete minutos, uma duração extraordinariamente longa.
Em cerca de seis minutos morreram 30.000 pessoas, a maioria dos edifícios públicos ruiram, bem como cerca de 12.000 habitações.
Era um dia de culto, donde grande parte das perdas humanas ocorreram nas igrejas.
Os incêndios que entretanto deflagraram um pouco por toda a zona da cidade que havia sido afectada, foram alimentados durante cerca de uma semana.

Ainda hoje podemos ver reflexos da devastação de há 250 anos, em locais como o Convento do Carmo e a Sé.

O gosto de revisitarmos a nossa história é hoje facilmente ultrapassado pelo mediatismo de acontecimentos de larga escala, mas de curta memória. É a vida.

Eufemismo do dia

“Até o Tiago Monteiro tem mais pontos que o Benfica”

Para aqueles menos familiarizados com as coisas do desporto, o Benfica é um clube de futebol.

qual será o trigésimo quarto resultado?

Em conferência de imprensa que antecedeu a partida de futebol realizada com o Clube Desportivo Nacional ontem à noite no Estádio Eng. Rui Alves, na Madeira, 0 treinador do Sporting Clube de Portugal, senhor José Peseiro, advertiu que o importante é continuar na senda das vitórias, mesmo que seja por… 2-1, o único resultado que os leões conhecem na presente edição da Liga.

Se pudermos repetir amanhã (ontem), não há problema. Aliás, não me importava se conseguíssemos repetir o 2-1 mais 30 jornadas, afirmou o treinador, visivelmente bem disposto.

Mas os outros senhores importam-se!

Tendo conseguido o singular resultado de vencer por duas bolas a uma os três jogos anteriores, e tendo o campeonato – como até o dr Pacheco Pereira* deve saber – 34 jornadas, das duas três: ou o treinador terá pensado que o jogo que veio a perder por 2-1 não contava para o campeonato, ou então só ele sabe porque não fica em casa.

*Bom dia.

Are you going with me?

Travels reflete a digressão da banda nos Estados Unidos em 1982.
São quase duas horas do melhor que Pat Metheny fez até hoje. E fez muito, e bom!
Esta gravação da ECM-1983, pertence com todo o mérito à short list de obras que se ouvem durante uma vida.

A formação contava então com Pat Metheny, Lyle Mays, Steve Rodby, Dan Gottlieb e Nana Vasconcelos.

Disco 1
1. Are You Going With Me?
2. The Fields, The Sky
3. Goodbye
4. Phase Dance
5. Straight On Red
6. Farmer’s Trust

Disco 2
1. Extradition
2. Goin’ Ahead – (with As Falls Wichita, So Falls Wichita Falls)
3. Travels
4. Song For Bilbao
5. San Lorenzo

Referendo: à porta do paraíso ou do inferno?

Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?

Da pressa do PS em convocar um novo referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, relevam, entre outros argumentos, os artificialismos jurídicos para atingir o objectivo:
– Não conseguindo anteriormente aprovar o referendo, alterou a lei; Agora, nos termos do poder legislativo, o argumento das sessões legislativas pretende legitimar um referendo ao qual o Presidente havia dito não!

Mesmo descontando a batalha neo-fundamentalista do CDS, para quem o embrião é uma vida humana (cabe aqui acrescentar que existe alguma confusão entre a defesa da vida e a defesa da vida humana), está longe de estar encerrada a discussão sobre este assunto que afecta – e muito, em muitos casos – a vida de tantas mulheres. E famílias.

Em rigor, definir essa linha divisória entre o embrião e o início da vida, não deve resumir-se a um auto de fé.
Há uma escala de valor no processo que deve ser consensualmente aceite pela comunidade; Antes disso, a discussão sobre o período no qual a interrupção é possível, seja 10 ou 12 semanas, está unicamente assente em noções que são simultaneamente materialistas e panteístas.
Em que termos se fará o referendo, então?

reflexo determinado, ou vice-versa


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Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…


Mário de Sá Carneiro