Arquivo de Junho, 2004

peço..

a todos os amigos que tiveram a gentileza de me linkar, e escreveram luminiscências, o favor de substituir por luminescências, que é o nome do meu cantinho.

Obrigado.

Desespero

Não eram meus os olhos que te olharam

Nem este corpo exausto que despi

Nem os lábios sedentos que poisaram

No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram

Tua falsa beleza, em que não vi

Mais que os vícios que um dia me geraram

E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu

Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,

Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.

A voz com que te chamo é o desencanto

E o espermen que te dou, o desespero.

Poema de José Carlos Ary dos Santos

Gravura de Artur Bual

Se Tu Me Esqueces

Quero que saibas

uma coisa.

Tu sabes como é:

se contemplo

a lua de cristal, os ramos rubros

do outono lento na minha janela,

se toco

ao pé do lume

a impalpável cinza

ou o corpo enrugado da lenha,

tudo a ti me conduz,

como se tudo o que existe.

aroma, luz , metais,

fossem barcos que navegam

em direcção às tuas ilhas que me esperam.

Ora bem, se a pouco e pouco deixas de amar-me

deixarei de amar-te a pouco e pouco.

Se de repente

me esqueceres

não me procures,

que já te haverei esquecido.

Se consideras longo e louco

o vento de bandeiras

que percorre a minha vida

e decidires

deixar-me à margem

do coração em que tenho raízes,

pensa

que nesse dia,

nessa hora,

levantarei os braços

e as minhas raízes irão

procurar outra terra.

Pablo Neruda

Os Versos do Capitão

(Tradução de Albano Martins)

Iluminuras medievais

Bellerophon is charged by the King of Lycia to kill the Chimera

Bellerophon kills the Chimera

Este Mar

Este mar me detém, mas nunca saberei

quem desvaneceu a escrita aqui abandonada num desígnio antiquíssimo:

as pegadas tenras das gaivotas, folhas tranquilas

a denunciar os ramos adejantes que copiam a espuma

Escrevo gaivotas , simplifico: acaso estes signos

sejam também de alcatrazes, alciões:

mas ao soletrar o seu ditado errante

decifro mensagens num livro tão precário que a brisa o arrebata.

Isso não importaria: eu iria olhando no chão o negativo de meus pés,

nada teria para o comparar, prosseguiria.

Até onde?

Prosseguiria sempre:

jamais findam as praias, nem quando a luz se rende.

Assim, terei de retornar ao poema: nomear o desconhecido,

reconstituir no mineral ou na face que o tempo feriu para delir depois

a pressão de umas pulsações, de uma cabeça vencida pelo cansaço [ou o desejo.

E recomeçar é sangrento se o ímpeto se finca apenas em palavras,

em matéria que não se possui.

As palavras nunca podem guardar-se;

quando poupadas, decompõem-se na sua própria usura.

Há que procurar o texto alado: rente às algas exaustas,

sob a turquesa estilhaçada que neva e tumultua,

iremos desvendá-lo.

Sem um indício?

Uma cor, um odor

vão conduzir-nos: os que no azebre de um rosto em nós sepulto

distanciam as feições do interior de onde despontam,

como o verbo se corrompe desde que as sílabas se juntam e ameaçam:

os sinais que gravamos propõem uma totalidade

até que uns olhos neles se jogam e os afastam

do sangue de onde nascem.

Esse é o exemplo das asas:

lassas, arqueiam-se suplicando o sol,

rasam a areia, prolongam a nervura das pegadas,

enfunam-se num arrepio inverniço – prenúncio de rajadas e marés –

e disparam para incendiar-se onde a sombra as não humilhe.

Recomeço, pois. Como recuperar o início?

os cirros como lanhos veementes a exaurir as tardes?

os areais rebeldes aos barcos, a expulsar o seu domínio?

Onde os dias a transbordar de conchas cálidas?

Estou aqui e é evidente que a ausência de sinais

sobre este chão, estas mãos, esta fronte que não sustenho

porque estão em outro lugar numa hora longínqua

é a única legenda que me pode ser dada.

Só resta transcrevê-la e extingui-la sem a ter compreendido.

Pousam estas letras como aves: desconhecem a morte,

para elas todo o espaço é este azul e o tempo o momento

em que seu vulto avança e é peso a impor um sentido

que será denunciado apenas a quem a seguir até à própria consumação:

a salsugem, o vento ávido de cumprir-se na sua fuga ao silêncio,

as vagas ou o esquecimento indiferentes ao destruir o que ignoram,

mesmo se a espuma é no meio-dia um peito em floração

e na noite a alva naufragada prestes a cobrir o corpo desejado.

Poema de José Bento

Fotografia de Carlos Serrano

Força Portugal!

Temos de estar preparados para a derrota..



.. a desilusão foi tremenda..

.. mas vamos continuar a apoiar a Selecção Nacional ATÉ AO FIM!

Porém, nada valeu em face da última visão:

Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula – e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua – ela surgiu, a mulher fulva…

E começou dançando…

Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…

Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, úmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara – toda a harmonia esvanecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se…

Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro…

Quimérico e nu, o seu corpo sutilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados – num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo – terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…



Vencedora, tudo foi lume sobre ela…

E, outra vez desvendada – esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.

Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro – ruivo meteoro – ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.

Então foi apoteose:

Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…

Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas – tranquilas, mortas também….

In «A Confissão de Lúcio» de Mário de Sá carneiro

Aguarela de Pratt (II)

Corto Maltese cruzou-se com muitas mulheres durante as suas aventuras, embora nenhuma tenha influenciado de forma decisiva o seu temperamento de solitário.

Porque são as mulheres tão importantes na história deste marinheiro?

Talvez porque é um incorrigível romântico e não consegue resistir a uns olhos bonitos .

“C’est parce que tu ne ressembles à personne que j’aurais voulu te rencontrer toujours, n’importe où”

O Coito e a Sauna

Melhor é foder primeiro, e então banhar.

Esperas que, curva, sobre o balde se ajeite

O traseiro nu miras com deleite

E tocas-lhe entre as coxas a reinar.

Mantém-na em posição, mas logo após

Assento no piço lhe seja permitido

Se duche quiser na cona, invertido.

Depois, claro, seguindo nossos avós,

Serve ela no banho.

As pedras põe a apitar

Com bátega rápida (que a água ferva)

Com tenra bétula te açoita e corado

Em balsâmico vapor mais esquentado

A pouco e pouco te deixas refrescar

Suando agora a fodança em caterva.

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Invocação às Ninfas do Tejo e do Mondego

Do Canto VII de “Os Lusíadas”, estâncias 78 a 87

Um ramo na mão tinha… Mas, ó cego,

Eu, que cometo, insano e temerário,

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,

Por caminho tão árduo, longo e vário!

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar, com vento tão contrário

Que, se não me ajudais, hei grande medo

Que o meu fraco batel se alague cedo.

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A Fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Cánace, que à morte se condena,

Numa mão sempre a espada e noutra a pena;

Agora, com pobreza avorrecida,

Por hospícios alheios degradado;

Agora, da esperança já adquirida,

De novo mais que nunca derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado

Que não menos milagre foi salvar-se

Que pera o Rei Judaico acrecentar-se.

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram.

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valerosos,

Que assi sabem prezar, com tais favores,

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Pera espertar engenhos curiosos,

Pera porem as cousas em memória

Que merecerem ter eterna glória!

Pois logo, em tantos males, é forçado

Que só vosso favor me não faleça,

Principalmente aqui, que sou chegado

Onde feitos diversos engrandeça:

Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado

Que não no empregue em quem o não mereça,

Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Imigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

Nenhum que use de seu poder bastante

Pera servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

Nem, Camenas, também cuideis que cante

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar o Rei, no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo!

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Pera taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios que não passa.

Aqueles sós direi que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento, descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.