Arquivo de Janeiro, 2012

O Universo numa Casca de Noz

Fechado numa casca de noz

Eu poderia julgar-me rei

de um espaço infinito…

– Shakespeare, Hamlet, acto 2, cena 2
(tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen)

As Idades do Mundo

A rubrica Caleidoscópio da Antena 2 difunde desde ontem uma série de 12 programas de audição obrigatória. Domingo às 10h00 | Ana Mântua/João Chambers

“Tomando como ponto de partida a obra-prima do pintor português Francisco de Holanda De Aetatibus Mundi Imagines, ou Imagens das Idades do Mundo, realizada no triénio 1545-1547, onde, numa linguagem totalmente inovadora e através de mais de centena e meia de ilustrações, se narra a história do mundo a partir do primeiro dia da Criação, concebemos uma série de doze programas que toma como denominação parte daquele título.
As características cíclicas da história da Humanidade, aliadas à permanente influência e contaminação de vários tipos de linguagens e de imagéticas, proporcionaram o eterno retorno às concepções do passado, nem que fosse apenas para as renegar, sendo os mesmos temas, por diversas vezes e ao longo dos tempos, retomados e apreendidos de diferentes formas pelos seus autores.
Tal como afirma o filósofo francês Gilles Deleuze ao caracterizar a cultura universal como “a civilização da imagem”, o tema principal destas emissões será o da sua força e a poderosa capacidade de arrebatamento, deleite ou, simplesmente, horror.
Privilegiando a música e a palavra que lhe está associada, abordaremos, ao longo dos próximos domingos, personalidades ímpares do génio artístico universal, as quais contribuíram, de forma indelével, para a renovação da imagem do mundo em diferentes momentos da História.”
Por Luís Ramos.

Musica Aeterna – seis séculos do nascimento de Joana d’Arc

Dias 07 e 14 de Janeiro, na Antena 2.

Considerando a documentação, toda de uma excepcional riqueza histórica, a sobreviver até aos nossos dias, constituída pelos vários volumes dos dois processos que lhe instauraram – o de condenação em 1431 e o de reabilitação em 1456 –, Joana d’Arc mantém-se como uma das personagens mais conhecidas e enigmáticas do século XV. Na verdade, esta circunstância refere-se, em primeiro lugar, ao contraste que tornou a sua acção, a par das fontes históricas que a documentam, profundamente desconcertante. Desde camponesa iletrada, ou seja, a parca instrução limitava-se a pouco mais do que saber recitar de cor várias orações, aos ecos de sermões escutados ou até às conversas com personalidades influentes, foi guindada a uma posição de grande destaque na História de França.
João Chambers

Reflexos do Desassossego

Criar dentro de mim um estado com uma política, com partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no panteísmo real desse povo-eu, essência e acção dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos actos que fazem. Ser tudo, ser eles e não eles. Ai de mim! este ainda é um dos sonhos que não logro realizar. Se o realizasse morreria talvez, não sei porquê, mas não se deve poder viver depois disso, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha usurpação do poder divino de ser tudo.
O prazer que me daria criar um jesuitismo das sensações!
Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra, (…). Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo – é impossível ocultar-lhes o som – é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente.
Porque exponho eu de vez em quando processos contraditórios e inconciliáveis de sonhar e de aprender a sonhar? Porque, provavelmente, tanto me habituei a sentir o falso como o verdadeiro, o sonhado tão nitidamente como o visto, que perdi a distinção humana, falsa, creio, entre a verdade e a mentira.
Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real. Pode ser mesmo que eu sinta duas coisas inconjugáveis ao mesmo tempo. Não importa.
Há criaturas que são capazes de sofrer longas horas por não lhes ser possível ser uma figura dum quadro ou dum naipe de baralho de cartas. Há almas sobre quem pesa como uma maldição o não lhes ser possível ser hoje gente da idade média. Aconteceu[-me] deste sofrimento em tempo. Hoje já me não acontece. Requintei para além disso. Mas dói-me, por exemplo, não me poder sonhar dois reis em reinos diversos, pertencentes, por exemplo, a universos com diversas espécies de espaços e de tempos. Não conseguir isso magoa-me verdadeiramente. Sabe-me a passar fome.
Poder sonhar o inconcebível visibilizando-o é um dos grandes triunfos que não eu, que sou tão grande, senão raras vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultaneamente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher dão à beira-rio. Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa dum livro antigo. Que absurdo que isto parece! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.
Bernardo Soares, Ajudante de Guarda Livros na Cidade de Liboa
in Livro do Desassossego, trecho 157.

Gustav Klimt (1862-1918) – Tragedy, 1897