Arquivo de Agosto, 2006

Corpo Presente

A pedra é uma fronte onde gemem os sonhos
sem água turva ter, nem ciprestes gelados.
A pedra é um dorso para levar ao tempo
com árvores de lágrimas de fitas e planetas.

Já vi chuvas cinzentas a correr para as ondas
erguendo seus tenros braços lacerados,
para não serem caçadas pela pedra estendida
que desata seus membros sem absorver o sangue.

Porque a pedra colhe nuvens e sementes,
esqueletos de calhandras e lobos de penumbra;
porém, não dá rumores, nem fogo, nem cristais,
mas só praças e praças e outra praça sem muros.

Já está sobre a pedra Ignacio o bem-nascido.
Já se acabou. Que se passa! Contemplai sua figura!
A morte cobriu-o de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de escuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra em sua boca.
Como louco, o ar deixa seu peito submerso,
e o Amor, empapado com lágrimas de neve,
aquece-se no cume das ganadarias.

Que dizem? Um silêncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinóis
e vemos que se enche de buracos sem fundo.

Quem enruga o sudário? O que ele diz é falso!
Não canta aqui ninguém, nem chora em seu recanto,
nem crava as esporas, nem assusta a serpente:
aqui não quero mais do que os olhos redondo
para ver esse corpo sem possível descanso.

Eu quero ver aqui os homens de voz dura
os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens cujo esqueleto lhes soa e cantam
com uma boca cheia de sol e pederneiras.

Quero vê-los aqui. Diante da pedra.
Diante deste corpo com as rédeas quebradas.
Eu quero que me mostrem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me mostrem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e margens bem profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o resfolgo duplo dos touros.

Que ele se perca na praça redonda da lua
que em menina finge um dorida rês imóvel;
que se perca na noite sem um canto dos peixes
e na moita branca do fumo congelado.

Não quero que tapem sua cara com lenços
para que se acostume com a morte que leva.
Vai, Ignacio: Não sintas o ardente bramido.
Dorme, voa, repousa: Mesmo até o mar morre!

poema de Federico García Lorca, in Llanto por Ignacio Sánchez Mejías
gravura de Francisco Goya

a diva e o pianista (post editado)

Em memória de Elisabeth Schwarzkopf, ouvir o lirismo e a vivacidade dramática da diva sobre o piano do grande Edwin Fischer.

Na habitual coluna no Público (link não disponível), Augusto M. Seabra afirma:
“Nela imperava a pose, a ponto de a sofisticação a fazer mesmo perder-se. O seu Schubert, por exemplo, é controverso, e os famosos 12 “lieder” gravados em 1952 com Edwin Fischer são-o particularmente – e sou um dos que acham essa gravação insuportável, por causa dela. Mas era a classe, a classe que em todos os sentidos a definia.”
Pois. Critique-se a sugestão dos 24 “lieder” de 1954, ou os “12” de 52, A Voz é a mesma. Por isso mantenho a homenagem. Obviamente.

Sob o signo de John Coltrane *


Em ano de homenagem a Mestre Coltrane, o destaque óbvio do Jazz em Agosto-2006 vai para o sexteto do virtuoso saxofonista Anthony Braxton, que actuará na última noite, dia 12.

Em minha opinião, o Festival tem vindo a perder algum fulgor, depois de nas décadas de 80 e 90 ter trazido pesos pesados como Jan Garbarek Quartet, 1987 / Ornette Coleman e “Prime Time Band”, 1988 / Branford Marsalis Quartet, 1990 / Don Byron Quartet, 1991 / Steve Coleman & Five Elements, 1992 / Dave Holland, 1992,1997 e 1999 com John Scofield e Joe Lovano / Max Roach Quartet, 1995 / Terence Blanchard Group, 1996 / Bobby Hutcherson Quartet e Branford Marsalis, ambos em 1998.

A quem gosta de jazz, recomendo a apreciação que o meu homónimo António Branco faz no excelente Improvisos Ao Sul.

* post editado em 20060817, para sublinhar o artigo A permanente actualidade da obra de Anthony Braxton de Manuel Jorge Veloso, no DN

Alla Turca (Allegretto)

Wolfgang Amadeus Mozart – The Piano Sonatas
Maria João Pires, piano
Deutsche Grammophon

Maria João Pires terá as suas idiossincrasias e tal como eu, por vezes, não gosta do país que vê.
Por isso os seus estados de alma têm impacto em aguns espíritos inquietos, que episodicamente saem em defesa da cultura do subsídio, para o que utilizam apenas uma mão estendida.
Não porque entenda que haja alguém acima da crítica, mas porque o virtuosismo e a delicadeza de MJP a colocam no restrito número dos pianistas realmente excepcionais, permito-me sugerir que ouçam a Sonata para Piano No.11 -“Alla Turca” tocado a duas mãos. Sem qualquer reverência.

En passant…

… ou como a progressão imprime movimento à côr.