Archive for the ‘ Artes ’ Category

Como eu não possuo, ou a incapacidade de ser..

desenho de Pablo Picasso, 1954
Como eu não possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem —
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minhalma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo…
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse — ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!…

Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo…
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?…

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor…
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!…

Desejo errado… Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim — ó ânsia! — eu a teria…

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante…

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

Mário de Sá Carneiro

Resistência aos calendários II

Talvez tenha sido este o último fim-de-semana de praia.
Como neste hino à vida, chega mais um momento de dizer que as nossas vidas são a espuma de um mar eterno..
Resta esperar pela próxima flor, se não for tarde..


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Poema del otoño

Tú, que estás la barba en la mano
meditabundo,
¿has dejado pasar, hermano,
la flor del mundo?

Te lamentas de los ayeres
con quejas vanas:
¡aún hay promesas de placeres
en los mañanas!

Aún puedes casar la olorosa
rosa y el lis,
y hay mirtos para tu orgullosa
cabeza gris.

El alma ahíta cruel inmola
lo que la alegra,
como Zingua, reina de Angola,
lúbrica negra.

Tú has gozado de la hora amable,
y oyes después
la imprecación del formidable
Eclesiastés.

El domingo de amor te hechiza;
mas mira cómo
llega el miércoles de ceniza;
Memento, homo…

Por eso hacia el florido monte
las almas van,
y se explican Anacreonte
y Omar Kayam.

Huyendo del mal, de improviso
se entra en el mal,
por la puerta del paraíso
artificial.

Y no obstante la vida es bella,
por poseer
la perla, la rosa, la estrella
y la mujer.

Lucifer brilla. Canta el ronco
mar. Y se pierde
Silvano, oculto tras el tronco
del haya verde.

Y sentimos la vida pura,
clara, real,
cuando la envuelve la dulzura
primaveral.

¿Para qué las envidias viles
y las injurias,
cuando retuercen sus reptiles
pálidas furias?

¿Para qué los odios funestos
de los ingratos?
¿Para qué los lívidos gestos
de los Pilatos?

¡Si lo terreno acaba, en suma,
cielo e infierno,
y nuestras vidas son la espuma
de un mar eterno!

Lavemos bien de nuestra veste
la amarga prosa;
soñemos en una celeste
mística rosa.

Cojamos la flor del instante;
¡la melodía
de la mágica alondra cante
la miel del día!

Amor a su fiesta convida
y nos corona.
Todos tenemos en la vida
nuestra Verona.

Aun en la hora crepuscular
canta una voz:
«Ruth, risueña, viene a espigar
para Booz!»

Mas coged la flor del instante,
cuando en Oriente
nace el alba para el fragante
adolescente.

¡Oh! Niño que con Eros juegas,
niños lozanos,
danzad como las ninfas griegas
y los silvanos.

El viejo tiempo todo roe
y va de prisa;
sabed vencerle, Cintia, Cloe
y Cidalisa.

Trocad por rosas azahares,
que suena el son
de aquel Cantar de los Cantares
de Salomón.

Príapo vela en los jardines
que Cipris huella;
Hécate hace aullar a los mastines;
mas Diana es bella;

y apenas envuelta en los velos
de la ilusión,
baja a los bosques de los cielos
por Endimión.

¡Adolescencia! Amor te dora
con su virtud;
goza del beso de la aurora,
¡oh juventud!

¡Desventurado el que ha cogido
tarde la flor!
Y ¡ay de aquel que nunca ha sabido
lo que es amor!

Yo he visto en tierra tropical
la sangre arder,
como en un cáliz de cristal,
en la mujer

Y en todas partes la que ama
y se consume
como una flor hecha de llama
y de perfume.

Abrasaos en esa llama
y respirad
ese perfume que embalsama
la Humanidad.

Gozad de la carne, ese bien
que hoy nos hechiza,
y después se tornará en
polvo y ceniza.

Gozad del sol, de la pagana
luz de sus fuegos;
gozad del sol, porque mañana
estaréis ciegos.

Gozad de la dulce armonía
que a Apolo invoca;
gozad del canto, porque un día
no tendréis boca.

Gozad de la tierra que un
bien cierto encierra;
gozad, porque no estáis aún
bajo la tierra.

Apartad el temor que os hiela
y que os restringe;
la paloma de Venus vuela
sobre la Esfinge.

Aún vencen muerte, tiempo y hado
las amorosas;
en las tumbas se han encontrado
mirtos y rosas.

Aún Anadiódema en sus lidias
nos da su ayuda;
aún resurge en la obra de Fidias
Friné desnuda.

Vive el bíblico Adán robusto,
de sangre humana,
y aún siente nuestra lengua el gusto
de la manzana.

Y hace de este globo viviente
fuerza y acción
la universal y omnipotente
fecundación.

El corazón del cielo late
por la victoria
de este vivir, que es un combate
y es una gloria.

Pues aunque hay pena y nos agravia
el sino adverso,
en nosotros corre la savia
del universo.

Nuestro cráneo guarda el vibrar
de tierra y sol,
como el ruido de la mar
el caracol.

La sal del mar en nuestras venas
va a borbotones;
tenemos sangre de sirenas
y de tritones.

A nosotros encinas, lauros,
frondas espesas;
tenemos carne de centauros
y satiresas.

En nosotros la vida vierte
fuerza y calor.
¡Vamos al reino de la Muerte
por el camino del Amor!

Ruben Darió, 1908

Maria sejas louvada

Minotaure caressant du Mufle la Main d’une Dormeuse, 1933
Minotaure caressant du Mufle la Main d'une Dormeuse, 1933

Maria sejas louvada
Como és tão apertada
Uma virgindade assim
É coisa demais p’ra mim.
Seja como for o sémen
Sempre o derramo expedito:
Ao fim dum tempo infinito
Muito antes do amen.

Maria sejas louvada
Tua virgindade encruada
‘Inda me pões fora de mim.
Porque és tão fiel assim?

Por que devo eu, que dialho
Só porque esperaste tanto
Logo eu, o teu encanto
Em vez doutro ter trabalho?

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Este é o tempo

De assobiar para o ar!

Quero lá saber que o Código Penal seja revisto, tendo por finalidade distinguir “melhor” dolo de negligência (como não soubessemos quão lenta é a nossa Justiça!)..
Quero lá saber se o Fundo de Solidariedade é ou não accionado(lá vêm mais subsídios!)..
Quero lá saber se vêm mais aviões a caminho para ajudar no combate aos incêndios ( depois de casa roubada, trancas à porta)..
Quero lá saber se – como tive oportunidade de observar no fim-de-semana – há descoordenação entre as forças de combate (Bombeiros, Protecção Civil, Liga para a Protecção da Natureza)…

O que eu sei, é o que vejo nas televisões! As populações a tentar proteger os seus bens, numa claríssima demonstração de falta de meios!
Não há volta a dar. Este país vai continuar a arder, quer porque não sabemos, quer porque não queremos fazer melhor..
Deixa arder!


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Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.

Sophia de Mello Breyner Andressen

Declínio

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Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…
– Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro

Cegueira dos sentidos

Ah, só eu sei
Quanto dói meu coração
Sem fé nem lei,
Sem melodia nem razão.

Só eu, só eu,
E não o posso dizer
Porque sentir é como o céu,
Vê-se mas não há nele que ver

Fernando Pessoa, 10/08/1932

Postais (com alma) da Invicta

Ribeira do Porto

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!
Porque não vens de olhos enxutos
e não despes as mãos
de mágoas e de lutos!

Poque hás-de vir semimorta,
com ar macerado e de bruxedo,
e não despes os ritos, o cansaço,
e as lágrimas e os mitos e o medo!

Porque não vens natural
Como um corpo sadio que se entrega,
e não destranças os cabelos,
e não nimbas de luz a tua treva!

Poque hás-de vir com a cor da morte
– se a morte já temos nós!
Porque adormeces os gestos,
porque entristeces os versos,
e nos quebras os membros e a voz!

Porque é que vens adorada
por uma longa procissão de velas,
se eu estou à tua espera em cada estrada,
nu, inteiramente nu,
sem mistérios, sem luas e sem estrelas!

Ó noite eterna e velada,
senhora da tristeza, sê alegria!
Vem de outra maneira ou vai-te embora,
e deixa romper o dia!

Eugénio de Andrade

Detalhe da Ribeira
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Refracção atenuada.. no ponto x

O que há em mim é sobretudo cansaço –
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas –
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada –
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço…

Álvaro de Campos

O décimo terceiro soneto

Sculpteur au Repos avec Modèle démasqué et sa Représentation sculptée, 1933

A palavra por que tanto me ralhaste
Vem do florentino. Fica é chamado
Aí o sexo da mulher. De traste
O grande Dante foi então apodado
Porque usou a palavra no poema
Foi injuriado, li hoje como fora
Pelo figo de Helena Páris outrora
(Mas este tirou mais proveito do esquema!)

Agora vês, que até o sombrio Dante
Se envolveu na disputa, que porfia
Por figo que afinal só se aprecia.
Não é só em Maquiavel que se proclama:
Na vida e no livro como é marcante
A briga pela parte que tem justa fama.

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Sentimento trágico da existência

Pablo PicassoHomme et femme nue

Se tu e eu, Teresa minha, nunca
nos tivéssemos visto,
tínhamos morrido sem sabê-lo:
não tínhamos vivido.

Tu sabes que morreste, vida minha,
tens, porém, o sentido
de que vives em mim, e viva esperas
que a ti regresse vivo.

Pelo amor soubemos nós da morte;
pelo amor soubemos
que se morre: sabemos que se vive
quando chega o morrermos.

Viver é somente, vida minha,
saber que se há vivido,
é morrer sabendo-o, dando graças
a Deus por ter nascido.

Miguel de Unamuno (1864-1936)
in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Selecção e tradução de José Bento