Archive for the ‘ Poesia ’ Category

Declínio

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Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…
– Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro

Cegueira dos sentidos

Ah, só eu sei
Quanto dói meu coração
Sem fé nem lei,
Sem melodia nem razão.

Só eu, só eu,
E não o posso dizer
Porque sentir é como o céu,
Vê-se mas não há nele que ver

Fernando Pessoa, 10/08/1932

Postais (com alma) da Invicta

Ribeira do Porto

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!
Porque não vens de olhos enxutos
e não despes as mãos
de mágoas e de lutos!

Poque hás-de vir semimorta,
com ar macerado e de bruxedo,
e não despes os ritos, o cansaço,
e as lágrimas e os mitos e o medo!

Porque não vens natural
Como um corpo sadio que se entrega,
e não destranças os cabelos,
e não nimbas de luz a tua treva!

Poque hás-de vir com a cor da morte
– se a morte já temos nós!
Porque adormeces os gestos,
porque entristeces os versos,
e nos quebras os membros e a voz!

Porque é que vens adorada
por uma longa procissão de velas,
se eu estou à tua espera em cada estrada,
nu, inteiramente nu,
sem mistérios, sem luas e sem estrelas!

Ó noite eterna e velada,
senhora da tristeza, sê alegria!
Vem de outra maneira ou vai-te embora,
e deixa romper o dia!

Eugénio de Andrade

Detalhe da Ribeira
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Refracção atenuada.. no ponto x

O que há em mim é sobretudo cansaço –
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas –
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada –
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço…

Álvaro de Campos

O décimo terceiro soneto

Sculpteur au Repos avec Modèle démasqué et sa Représentation sculptée, 1933

A palavra por que tanto me ralhaste
Vem do florentino. Fica é chamado
Aí o sexo da mulher. De traste
O grande Dante foi então apodado
Porque usou a palavra no poema
Foi injuriado, li hoje como fora
Pelo figo de Helena Páris outrora
(Mas este tirou mais proveito do esquema!)

Agora vês, que até o sombrio Dante
Se envolveu na disputa, que porfia
Por figo que afinal só se aprecia.
Não é só em Maquiavel que se proclama:
Na vida e no livro como é marcante
A briga pela parte que tem justa fama.

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Sentimento trágico da existência

Pablo PicassoHomme et femme nue

Se tu e eu, Teresa minha, nunca
nos tivéssemos visto,
tínhamos morrido sem sabê-lo:
não tínhamos vivido.

Tu sabes que morreste, vida minha,
tens, porém, o sentido
de que vives em mim, e viva esperas
que a ti regresse vivo.

Pelo amor soubemos nós da morte;
pelo amor soubemos
que se morre: sabemos que se vive
quando chega o morrermos.

Viver é somente, vida minha,
saber que se há vivido,
é morrer sabendo-o, dando graças
a Deus por ter nascido.

Miguel de Unamuno (1864-1936)
in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Selecção e tradução de José Bento

Sete Mares de Aventura..

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Senhora das tempestades

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terramoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em página nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhoras das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgia
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa-dos-ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhoras das tempestades.

Manuel Alegre

Verei por ti

Unamuno e Gustavo Adolfo Bécquer representam dois dos expoentes da poesia espanhola do final do século XIX. Inicia-se com eles o Modernismo, que em Portugal principiou com a revista Orpheu (em 1915).
Contudo, Miguel de Unamuno não encaixava no Movimento; exaltava a pátria, a sua Espanha que lhe doía.

Verei por ti ilustra a grandeza espiritual deste poeta.

«Desconheço-me», dizes, mas olha, tem por certo
que a conhecer-se começa o homem quando clama
«Desconheço-me» e chora;
a seus olhos então o coração aberto
da sua vida encontra a verdadeira trama;
é então sua aurora.

Não, ninguém se conhece, até que o toca
a luz de uma alma irmã que do eterno chega
e seu fundo ilumina;
teu íntimo sentir floresce em minha boca,
tens a vista em meus olhos, vê por mim, minha cega,
vê por mim e caminha.

«Estou cega», dizes-me; apoia-te em meu braço
e alumia com teus olhos nossa áspera via
perdida no futuro;
verei por ti, confia; tua vista é este laço
que a ti me atou; meu olhar a garantia
de um caminhar seguro.

Que importa que os teus não vejam o caminho,
se dão luz aos meus e me iluminam todo
com seu tranquilo lume?
Apoia-te em meus ombros, confia-te ao Destino,
verei por ti, ó cega, afastar-te-ei do lodo,
levar-te-ei ao cume.

E ali, na luz envolta, abrir-se-ão teus olhos,
verás como esta senda atrás de nós, distante,
se perde na distância
e nela desta vida os míseros restolhos,
e aos reflexos do céu abrir-se-nos, radiante,
o que hoje é esperança.

Miguel de Unamuno (1864-1936)
in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Selecção e tradução de José Bento

Da vergonha na mulher

Sculpteur au Repos avec Marie-Thérèse et sa Représentation en Vénus pudique, 1933

Detesto se a mulher é de demorar
Gosto daquela, que sôfrega permita
Consolar-se logo, a vergonha expedita
Entre sedenta e esquiva sempre a arfar.
Mudá-la deve o acto desde os fundos
Até à distorção! Os corpos em rodopio
Estejam nos homens e no mulherio
Longe as cabeças como em dois mundos.
Vergonha a mais para lançar mão à carne
Do homem, prazer demais para que desarme
Julgue-se a mulher pelo metro do prazer.
Boa demais, para sentir na espera
Sôfrega demais, para não tomar o que quisera
É-lhe permitido o tino perder.

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Consequências da desastrada ambição do homem

Acto contínuo, a reflexão sobre o post anterior sugere-me esta ode:

Epístola para Dédalo

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera

se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?

Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:

todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.

Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue

dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

Fiama Hasse Pais Brandão, in Epístolas e Memorandos, 1996

O mito de Ícaro simboliza o trágico desengano dos nadadores do ar.

É uma grande odisseia enfrentar todas as consequências decorrentes do natural sentimento de paternidade!