Arquivo de 25 de Julho, 2004

Para "A Sebastiana"

Eu construí a casa.

Fi-la primeiro de ar.

Depois hasteei a bandeira

E deixei-a pendurada

no firmamento, na estrela,

na claridade e na escuridão.

Cimento, ferro, vidro,

eram a fábula,

valiam mais que o trigo e como o ouro,

era preciso procurar e vender,

e assim chegou um camião:

desceram sacose mais sacos,

a torre agarrou-se à terra dura- mas,

não basta, disse o construtor,

falta cimento, vidro, ferro, portas ,

e nessa noite não dormi. 

Mas crescia,

cresciam as janelas

e com pouco,

com pegar no papel e trabalhar,

arremetendo-lhe com joelho e ombro

ia crescer até chegar a ser,

até poder olhar pela janela,

e parecia que com tanto saco

poderia ter tecto e subiria

e agarraria, por fim, a bandeira

que suspensa do céu agitava ainda as suas cores.

Dediquei-me às portas mais baratas,

às que morreram

e tinham sido arrancadas de suas casas,

portas sem parede, rachadas,

amontoadas nas demolições,

portas já sem memória,

sem recordação de chave,e disse: “Vinde

a mim, portas perdidas:

dar-vos-ei casa e parede

e mão que bate,

oscilareis de novo abrindo a alma,

velareis o sono de Matilde

com as vossas asas que voaram tanto.”

Então a pintura

chegou também lambendo as paredes,

vestiu-as de azul-celeste e cor-de-rosa

para que se pusessem a bailar.

Assim a torre baila,

cantam as escadas e as portas,

sobe a casa até tocar o mastro,

mas falta dinheiro:faltam pregos,

faltam aldrabas, fechaduras, mármore.

Contudo, a casa

vai subindo

e algo acontece, um latejo

circula nas suas artérias:

é talvez um serrote que navega

como um peixe na água dos sonhos

ou um martelo que pica

como um pérfido pica-pau

as tábuas do pinhal que pisaremos.

Algo acontece e a vida continua.

A casa cresce e fala,

aguenta-se nos pés,

tem roupa pendurada num andaime,

e como pelo mar a primavera

nadando como ninfa marinha

beija a areia de Valparaíso,

não pensemos mais: esta é a casa:

tudo o que lhe falta será azul,

agora só precisa de florir.

E isso é trabalho da primavera.

Pablo Neruda