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Na última vez que nos cruzámos, José Bento confessava que dificilmente voltaria a Dom Quixote.
Traduzir uma obra destas, mais que hercúlea, é uma tarefa impossível; sempre que lhe pegasse, alteraria qualquer coisa…
Seis meses depois, é com grande satisfação que recebo a notícia da atribuição do Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura ao roncinante amigo.
Como pequena homenagem, ficam os links para alguns poemas de José Bento publicados no Luminescências:
Este mar me detém, mas nunca saberei…
Como diluir as estrias que traem tua idade…
Para Botticelli
Porque o Fim de um Caminho…
Sobre as duas traduções de Don Quijote de la Mancha, escreveu João Dionísio da Universidade de Lisboa:
Em síntese, as duas traduções parecem orientar-se de modo bastante diferenciado nas duas facetas observadas. Quanto ao Quixote de 1605, o texto de que parte a tradução de Serras Pereira será talvez mais inovador e o de José Bento possivelmente mais conservador. Quanto ao código bibliográfico, a roupagem da tradução Serras Pereira quer dar a entender que estamos perante um documento com certificado de origem, ou de uma certa origem; a da tradução José Bento sugere um texto com certificado de destino.

AMADEO DE SOUSA-CARDOSO chegou a Paris em Novembro de 1906, alguns meses depois de Modigliani. Neste período, morria Cézanne, enquanto Picasso pintava «Les Demoiselles d`Avignon».
Em Montmartre, nos ateliers de boémia e miséria, começava uma nova época da pintura ocidental; Em Montparnasse, Amadeo procurava nos ateliers do Boulevard Raspail a admissão às «Beaux-Arts», no seguimento dos estudos iniciados em 1905, na Academia das Belas-Artes em Lisboa.
Desde cedo, Manuel Laranjeira, médico no Porto, exerceu grande influência, no plano intelectual e humano, na evolução do jovem Amadeo, a quem via nos verões da praia de Espinho, onde seus pais tinham casa. As tertúlias no Café Chinês, os passeios e a troca de correspondência tornariam Amadeo seu confidente.
Manuel Laranjeira tinha perante a arte um sentimento de raiz literária da Renascença Portuguesa, entre névoas e saudades.
Este melancolismo não afectava Amadeo, antes lhe provocava desgosto pela futilidade da vida que levava; O tédio das cópias a carvão no casarão do Largo da Biblioteca, as caricaturas de professores e colegas, fraca compensação da mediocridade que deixara em Lisboa e Porto.
Fernando Pessoa chegava a Portugal , Santa-Rita pintava o «Orfeu do Inferno» e Almada Negreiros tinha dez anos de idade.
Amadeo, a quem Manuel Laranjeira vaticinara que «haveria de vencer, haveria de triunfar», desenhou o corpo do amigo enrodilhado numa cadeira de café, abandonado, escorregando, um braço estirado sobre o tampo, outro torcido para as costas da cadeira, as pernas magras torcidas e a trunfa negra saindo do chapeirão enfiado pela cabeça abaixo, boneco desarticulado, só de costas e à deriva do destino…

No verão de 1907, Amadeo abandonava os estudos na Escola de Arquitectura, enquanto confessava que, longe de ter perdido tempo por concluir não ter vocação, antes tinha alargado os seus conhecimentos artísticos , cuja utilidade se reflectia na sua evolução natural enquanto caricaturista.
Durante esse tempo, ia estudando os modelos da imprensa parisiense; Ao contrário de outros artistas portugueses que nesse período também estudavam em Paris, como Emmerico Nunes, Manuel Bentes, Acácio Lino, Alfredo Ferraz – modernistas e naturalistas – adquiria um traço mais sintético, de melhor definição formal, fruto da liberdade de quem não dependia dos desenhos para viver.
Em noitadas de sacrifício a Baco, Amadeo, desnudado, fazendo peito, coroa de parras na cabeça e garrafas ao pé; a seu lado, Bentes, Alberto e Emmerico faziam figuração, repetindo poses dos «borrachos» de Velasquez. Devia ser bonito de ver…

Na caricatura de 1910, juntamente com os colegas Manuel Bentes, Eduardo Viana e Emmerico, Amadeo é um rapaz empertigado, o busto envolvido numa capa que lhe esconde parte do rosto, um chapéu sobre os olhos, de pose espanholada.
Assim ele se via na autocaricatura; de peito arqueado e alargando os braços e as mãos enluvadas, caminhando nas pontas da botas para impor uma estatura que não era a sua.
Será porventura a Exposição mais importante do ano (na Gulbenkian), pela importância da obra de Amadeo Sousa-Cardoso; A expectativa reside em saber se consegue rivalizar com esta.

Por uma senda cheia de ametistas e gotas
de sangue de mancebos,
chegou Luis Cernuda
ao inferno. Contempla o âmbito terrível,
ouve as vozes longas como rastros de cobra,
junta as mãos num gesto de aceitação.
Depois, banhado de uma rubra luz,
continua a andar. De súbito,
um homem – barba nobre, olhos sem mácula –
aproximou-se dele.
Sobre o ombro pôs-lhe
a sua mão, detém-o. Diz:
– Sê benvindo, Luis Cernuda,
ao nosso reino. Tira a gravata, se quiseres,
pois está calor
neste eterno verão onde irrompeste,
e conta-me. Não ignoro
que me exaltaste em versos doloridos,
queixando-te do mundo sem verdade que deixaste.
Dir-te-ei, Luis Cernuda, que comigo
não está Rimbaud;
foi ofício do destino separar-nos.
Fala sem medo. Senta-te
nesta rocha. Fala-me do mundo.
Luis Cernuda fitou
Verlaine. Mas cala-se.
Verlaine já não pergunta, olha
os dedos finos, nobres,
a presença andaluza,
e abismam-se ambos num silêncio denso.
Um vento leve areja
o tecto de seda do inferno,
quando o demónio surge,
reclama
sua humana presa última.
Os lábios do demónio, formosos, perturbantes,
abrem-se para emitir o seu juízo:
– Luis Cernuda, amaste
tudo quanto a terra te oferecera,
desde a andorinha da Sevilha onde nasceste
até à dor de ferro de teu exílio.
Por ti viveram, reviveram
um olor de laranjais em flor,
um rapaz a vender jasmins na rua,
a morte do inverno,
uma tempestade de pombas.
Ódio não houve na tua vida, filho,
mas dor e confessada ferida.
Aceito-te. Passeia
em meus domínios,
recolhe o fogo inédito,
afaga as aves que teus cabelos roçam,
entra em tua cidade, esta
nova Sevilha para ti guardada,
feita à tua cálida medida,
olorosa, e não a gentes que te humilhem.
Porque purgaste em lágrimas o que não mereceste.
Luis Cernuda, assombrado,
pôs-se de pé, todo luz.
Verlaine sorri. Cantam arcanjos e santos,
que rodeiam o trio. Luis Cernuda
compreendeu. Fala por fim,
pode dizer apenas, num suspiro imenso:
– Deus meu.
(Manuel Mantero)
Excelente prenda para o Natal que se aproxima, esta edição especial de Tabacaria.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do Sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal-disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
(Álvaro de Campos)
Muro, em que meditas,
ao longo da estrada, por estas quintas,
casas, ermos, entre paixões
de alma dos espectros
presentes e vindouros? E os vivos,
porque se escondem
por trás da tua fronte alta,
quieta, seca, que cobiça os astros,
sem saber que o teu corpo
de xisto corre, avança,
mas não pode soltar-se da Terra
e alcançar o Alto?
Fiama Hasse Pais Brandão, As Fábulas
Em vez de Pajem bobo presunçoso.
Sua Ama de neve asco de um vómito.
Seu ânimo cantado como indómito
Um lacaio invertido e pressuroso.
O sem nervos nem ânsia – o papa- açorda,
(Seu coração talvez movido a corda…)
Apesar de seus berros ao Ideal
O corrido, o raimoso, o desleal
O balofo arrotando Império astral
O mago sem condão, o Esfinge Gorda.
Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca
Mário Cesariny
Não te conhece o lombo da pedra,
nem o cetim negro onde tu destroças.
Não te conhece tua lembrança muda
porque tu morreste para sempre.
O Outono chegará com búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá olhar teus olhos
porque tu morreste para sempre.
Porque tu morreste para sempre,
como todos os mortos que há na Terra,
como todos os mortos que se esquecem,
num monte enorme de cães apagados.
Não te conhece ninguém. Não. porém, eu canto-te.
Canto para depois teu perfil e tua graça.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Teu apetite de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.
Tardará muito tempo a nascer, se nascer,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Canto sua elegância com palavras que gemem
e lembro uma brisa triste entre as oliveiras.
Fica assim completa a série de quatro poemas dedicados a Ignacio Sánchez Mejías, bandarilheiro sevilhano: A Colhida e a Morte, O Sangue Derramado, Corpo Presente e Alma Ausente.
Inteligente e culto, Ignacio era entusiasta do cante hondo e da dança espanhola; Casado com a irmã do toureiro Joselito, manteve até à morte – em Agosto de 1934 – uma ligação amorosa com a célebre bailarina Encarnación López, La Argentinita, a quem García Lorca dedicou o Llanto.
Fernando Pessoa, 24-08-1930
