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A Memória

A memória foi um género literário
quando ainda não tinha nascido a escrita.
Veio a ser depois crónica e tradição
mas já fedia como um cadáver.
A memória vivente é imemorial,
não surge da mente, não se enraiza nela.
Junta-se ao existente como uma auréola
de névoa na cabeça. Está já esfumada, é duvidoso
que regresse. Nem sempre tem memória
de si.
Poema de Eugenio Montale, extraído de «Caderno de Quatro Anos» (1960 e 1973-1977)
Gravura de William Blake, extraída do poema ilustrado “Jerusalém”

Basta-me a Primavera, com um Sorriso e uma Flor

Traz-me um girassol para que o transplante
no meu árido terreno
e mostre todo o dia
ao espelho azul do céu
a ansiedade do teu rosto
amarelento

Tendem à claridade as coisas obscuras
esgotam-se os corpos num fluir
de tintas ou de músicas. Desaparecer
é então a dita das ditas

Traz-me tu a planta que conduz
aonde crescem loiras transparências
e se evapora a vida como essência
Traz-me o girassol de enlouquecidas luzes

Poema de Eugenio Montale
Desenho de Vincent Van GoghFifteen Sunflowers in a Vase, 1888

Big Bang.. or Big Crunch?

Somos fruto de um acaso verdadeiramente notável!
Como se fizéssemos parte de um jogo de poker, com as cartas viciadas!
Pena que não tomemos consciência da sorte que temos..!

Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
terra que não quer perecer.

Eugenio Montale (1896-1981)