Quando os Yes reinaram sobre a Terra
Queriam inventar música nunca antes criada e tornaram-se incrivelmente populares nisso. Nos anos 1970, foram uma das bandas mais famosas do planeta mas hoje é difícil vê-los para além da caricatura. The Studio Albums 1969-1987 é o mote para o fazermos.
Mário Lopes, Ípsilon de 27 Dez 2013
E aquele momento em que percebemos como Starship trooper, com o som fluído como líquido da guitarra e o baixo a distorcer e a reverberar, poderia ter inspirado muita da moderna chillwave, o género de reciclagem de memórias sonoras que ouvimos nos Washed Out? E essa canção de Fragile, We have heaven, que, com as suas harmonias vocais incessantes e ritmo seco, quase juramos ser a origem perdida dos Animal Collective? E todas essas secções no interior de longas canções que nos surpreendem: não são os Flaming Lips que surgem reflectidos algures em You and I, de Close to the Edge?, este festim percutivo psicadélico que irrompe quase no final de Ritual (Nous sommes du soleil) não faria as delícias da banda xamã que são os Gala Drop?
Não deveria fazer sentido. Não deveria porque estes momentos pertencem aos Yes, banda-ícone do rock progressivo britânico ao lado de King Crimson, Genesis e Emerson, Lake & Palmer — e provavelmente a mais popular na sua época, logo atrás dos Pink Floyd (que não eram vistos exactamente como rock progressivo, antes como entidade sem filiação).
Como sabemos, o rock progressivo é o saco de pancada predilecto de 95% dos fãs de música. É a música que perdeu porque tinha de perder, soçobrando sob o peso da sua ambição desmedida, do aborrecimento atroz que causava e dos seus insuportáveis ares de superioridade. Isto é onde estamos hoje. O recente lançamento de The Studio Albums 1969-1987, que reúne os 13 álbuns de estúdio lançados pela banda no período (edição simples: CD em caixas de cartão reproduzindo as reedições de 2003 e uma pequena nova ilustração de Roger Dean), é oportunidade para contar o outro lado da história. A que reuniu Chris Squire, baixista extraordinário, ao vocalista Jon Anderson para criar música que reunisse harmonias vocais perfeitas ao perfeito domínio instrumental. Juntaram-se-lhes o impressionante baterista Bill Brufford, o guitarrista Peter Banks e o teclista Tony Kaye e o início da banda sinalizou o nascimento de uma nova era: em 1968, no Royal Albert Hall, foram a banda suporte do concerto de despedida dos Cream, culminar do blues rock psicadélico do final de década de 1960.
Quatro anos depois, já com o guitarrista Steve Howe e o teclista Rick Wakeman a completar a formação clássica da banda, tudo tinha mudado. Tal como muitos dos seus contemporâneos, procuravam chegar onde ninguém chegara antes: uma linguagem nova, em que o virtuosismo instrumental serviria para mostrar o rock como arte maior, como possível ponto de confluência de fôlego narrativo com as aprendizagens do jazz e da clássica. Mas os Yes não se ficaram por aí. Até tão longe quanto meados dos anos 1980, atravessaram quase incólumes a passagem do tempo.
Sobreviveram à saída (e à reentrada) de membros emblemáticos como Steve Howe, Jon Anderson e Rick Wakeman, tiveram na sua formação os Buggles Trevor Horn e Geoff Downes, fãs de longa data, mas aparentemente nos antípodas dos Yes (não é Video killed the radio star um hino à concisão pop da new wave?) e entraram pelos anos 1980 com pompa e circunstância, reinventados sob a forma do monstrengo de rock FM que legou ao mundo Owner of a lonely heart (90125, o álbum correspondente, editado em 1983 e hoje datadíssimo, tornou-se ironicamente o álbum mais vendido na história da banda).
Pouco na sua discografia é consistente do princípio ao fim (The Yes Album, Close To The Edge e Fragile são os que mais se aproximam e as experiências orquestrais no segundo, Time And a Word, merecem destaque), mas o seu período clássico da década de 1970 está repleto de preciosidades. Não por acaso, é na apropriação de excertos seleccionados que a banda melhor tem sobrevivido na cultura popular. Ouvimos o motivo que atravessa Siberian Khatru, tão funk quanto funk eram os Funkadelic, e não nos espantamos por, ao longo dos anos, a música dos Yes ser mina a que o hip-hop recorre regularmente (De La Soul, J Dilla, Nas, LL Cool J, Lil Wayne, Salt-N-Pepa). E, no entanto, é como se os Yes não existissem além da caricatura — nem a presença na banda-sonora de Buffalo 66, filme de culto de Vincent Gallo, os tornou vagamente cool.
Ambição
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