Archive for the ‘ Poesia ’ Category

Cantilena Para Um Tocador De Flauta Cego



White Faun playing the Double Flute – Picasso

Flauta da noite que se cerra,

Presença líquida de um pranto,

Todos os silêncios da terra

São as pétalas do teu canto.

Espalha teu pólen na alfombra

Do catre que por fim te acoite

Mel de uma boca de sombra

Como um beijo na boca da noite

E pois que as escalas que cansas

Nos dizem que o dia acabou,

Faz-nos crer que os céus dançam

Porque um cego cantou.

Marguerite Yourcenar, Tradução de Mário Cesariny

Do amante

Ai, a carne é fraca, não tem discussão

E eu, que enfraqueci mulher de amigo

Evito o meu quarto, dormir não consigo

Vejo-me à noite: atento a qualquer som!

E isso advém de o seu quarto afinal

Ser contíguo ao meu.

O que me consome

É que eu ouço tudo, quando ele a come

E se não ouço, penso:

é pior o mal!

Se já tarde os três bebemos um copito

E eu noto que o meu amigo não fuma

E, quando a mira, põe olhos em bico

Encho o copo dela a deitar por fora

E obrigo-a a beber, se não colabora,

P’ra ela à noite não dar por nenhuma.

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

Do Prazer dos Homens Casados

Mulheres minhas, infiéis, adoro amá-las:

Vêem meu olho em sua pelve embutido

E têm de encobrir o ventre já enchido

(Como dá gozo assim observá-las).

Na boca ainda o sabor do outro homem

Ela é forçada a dar-me tesão viva

Com essa boca a rir para mim lasciva

Outro caralho ainda no frio abdómen!

Enquanto a contemplo, quieto e alheio

Do prato do seu gozo comendo os restos

Esgana no peito o sexo, com seus gestos.

Ao escrever os versos, ainda eu estava cheio!

(O gozo ia eu pagar de forma extrema

Se as amantes lessem este poema.)

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

ainda e sempre

Garôta de Ipanema

Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim

Olha que coisa mais linda

Mais cheia de graça

É ela menina

Que vem e que passa

Num doce balanço

A caminho do mar

Moça do corpo dourado

Do sol de lpanema

O seu balançado é mais que um poema

É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, por que estou tão sozinho?

Ah, por que tudo é tão triste?

Ah, a beleza que existe

A beleza que não é só minha

Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse

Que quando ela passa

O mundo inteirinho se enche de graça

E fica mais lindo

Por causa do amor

Cada dia sem gozo não foi teu

Foi só durares nele. Quanto vivas

Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que amas, bebas ou sorrias:

Basta o reflexo do sol ido na água

De um charco, se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas

Seu prazer posto, nenhum dia nega

A natural ventura!

Ricardo Reis

Cada dia sem gozo não foi teu

Foi só durares nele. Quanto vivas

Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que amas, bebas ou sorrias:

Basta o reflexo do sol ido na água

De um charco, se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas

Seu prazer posto, nenhum dia nega

A natural ventura!

Ricardo Reis

as pequenas palavras

De todas as palavras escolhi água

porque lágrima, chuva, porque mar

porque saliva, bátega, nascente

porque rio, porque sede, porque fonte.

De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor

porque terra, papoila, cor, semente

porque rosa, recado, porque pele

porque pétala, pólen, porque vento.

De todas as palavras escolhi mel.

De todas as palavras escolhi voz

porque cantiga, riso, porque amor

porque partilha, boca, porque nós

porque segredo, água, mel e flor.

E porque poesia e porque adeus

de todas as palavras escohi dor.

Rosa Lobato de Faria

Hábitos de Amar

Não é exacto que o prazer só perdura.

Muita vez vivido, cresce ainda mais.

Repetir as mil versões prévias, iguais

É aquilo que a nossa atracção segura:

O frémito do teu traseiro há muito

A pedi-las!

Oh, a tua carne é ardil!

E a segunda é, que traz venturas mil,

Que a tua voz presa exija o desfruto!

Esse abrir de joelhos!

Esse deixar-se coitar!

E o tremer, que à minha carne sinal solta

Que saciada a ânsia, logo te volta!

Esse serpear lasso!

As mãos a buscar- me.

Tua a sorrir!

Ai, vezes que se faça:

Não fossem já tantas, não tinha tanta graça!

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso

de José Bento, por quem tenho estima pessoal

Porque o Fim de um Caminho…

Porque o fim de um caminho sempre me entregou

o limiar de outro caminho,

o verde de um campo ou de um corpo adolescente,

espero que regresse à minha voz

a luz que no primeiro dia a fecundou

e a terra que é o contorno dessa luz.

Porque espero ver crescer minhas mãos dessa terra

e de minhas mãos a água necessária à minha sede,

ergo de mim a noite residual do que vivi

e canto,

canto provocando a madrugada.

Porque outros entoarão meu requiem e outros cerrarão

minha pálpebras para defender meus olhos de suas lágrimas,

deixo essa glória aos outros

– e exalto o meu nascimento

e cada dia em que renasço e procuro

a boca ou o fruto onde se reflitam os meus lábios.

Porque, harmonizando-se no sangue o fogo e a água,

eu sou o fogo e a água:

por mim os cadáveres e quanto é feito de matéria dos cadáveres

libertar-se-ão em chamas, serão claridade

e chegarão a pão pela dádiva das cinzas,

a última dádiva, a total.

Aula de Amor

Mas, menina, vai com calma
Mais sedução nesse grasne:
Carnalmente eu amo a alma
E com alma eu amo a carne.

Faminto, me queria eu cheio
Não morra o cio com pudor
Amo virtude com traseiro
E no traseiro virtude pôr.

Muita menina sentiu perigo
Desde que o deus no cisne entrou
Foi com gosto ela ao castigo:
O canto do cisne ele não perdoou

Poema de Bertolt Brecht, gravura de Pablo Picasso