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Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula – e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua – ela surgiu, a mulher fulva…
E começou dançando…
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, úmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara – toda a harmonia esvanecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se…
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro…
Quimérico e nu, o seu corpo sutilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados – num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo – terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…

Vencedora, tudo foi lume sobre ela…
E, outra vez desvendada – esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro – ruivo meteoro – ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas – tranquilas, mortas também….
In «A Confissão de Lúcio» de Mário de Sá carneiro
Começou então a última tortura…
Num grande esforço, procurei ainda esquecer-me do que descobrira – esconder a cabeça debaixo dos lençóis como as crianças, com medo dos ladrões, nas noites de inverno.
Ao entrelaçá-la, hoje, debatia-me em êxtases tão profundos, mordia-a tão sofregamente, que ela uma vez se me queixou.
Com efeito, sabê-la possuída por outro amante – se me fazia sofrer na alma, só me excitava, só me contorcia nos desejos…
Sim! sim! – aquele corpo esplêndido, triunfal, dava-se a três homens – três machos que se estiraçavam sobre ele, a possuí-lo, a sugá-lo!… Três? Quem sabia se uma multidão?… E ao mesmo tempo que esta ideia me despedaçava, vinha-me um desejo perverso de que assim fosse…
Ao estrebuchá-la agora, em verdade, era como se, em beijos monstruosos, eu possuísse também todos os corpos masculinos que resvalavam pelo seu.
A minha ânsia convertera-se em achar na sua carne uma mordedura, uma escoriação de amor, qualquer rastro de outro amante…
E um dia de triunfo, finalmente, descobri-lhe no seio esquerdo uma grande nódoa negra… Num ímpeto, numa fúria, colei a minha boca a essa mancha – chupando-a, trincando-a, dilacerando-a…
Marta, porém, não gritou. Era muito natural que gritasse com a minha violência, pois a boca ficara-me até sabendo a sangue. Mas o certo é que não teve um queixume. Nem mesmo parecera notar essa carícia brutal…
De modo que, depois de ela sair, eu não pude recordar-me do meu beijo de fogo – foi-me impossível relembrá-lo numa estranha dúvida…

Ai, quanto eu não daria por conhecer o seu outro amante… os seus outros amantes…
Se ela me contasse os seus amores livremente, sinceramente, se eu não ignorasse as suas horas – todo o meu ciúme desapareceria, não teria razão de existir.
Com efeito, se ela não se ocultasse de mim, se apenas se ocultasse dos outros, eu seria o primeiro. Logo, só me poderia envaidecer; de forma alguma me poderia revoltar em orgulho. Porque a verdade era essa, atingira: todo o meu sofrimento provinha apenas do meu orgulho ferido.
Não, não me enganara outrora, ao pensar que nada me angustiaria por a minha amante se entregar a outros. Unicamente era necessário que ela me contasse os seus amores, os seus espasmos até.
O meu orgulho só não admitia segredos. E em Marta era tudo mistério. Daí a minha angústia – daí o meu ciúme.
Muita vez – julgo, diligenciei fazer-lhe compreender isto mesmo, evidenciar-lhe a minha forma de sentir, a ver se provocava uma confissão inteira da sua parte, cessando assim o meu martírio. Ela, porém, ou nunca me percebeu, ou era resumido o seu afeto para tamanha prova de amor.
In «A Confissão de Lúcio» de Mário de Sá carneiro

A todas as pessoas que me visitam neste espaço e que têm a generosidade de partilhar comigo alguns pensamentos.
Eu não sou eu nem sou outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá Carneiro, Indícios de Oiro (1916)
